Por George Paulus Dias – IA e narrativa da fábrica invisível: entre tokens, energia e estratégia

Imagem gerada com GPT4o

Na recente edição do Hill & Valley Forum, o CEO da Nvidia, Jensen Huang, voltou a apresentar sua visão para a próxima revolução industrial: fábricas de inteligência artificial que produzem tokens — unidades matemáticas capazes de gerar texto, imagens, decisões, proteínas, enfim, os novos “produtos” digitais do século XXI. Na sua narrativa, cada organização passará a operar dois tipos de fábrica: a que entrega o produto físico e outra, paralela, que gera a inteligência que o comanda. A metáfora é poderosa. Mas também exige cautela.

A argumentação de Huang se ancora em três camadas: tecnologia, infraestrutura e aplicação. No plano tecnológico, ele descreve uma transformação silenciosa, porém radical — a substituição do software tradicional por “sistemas aprendidos”, que não são programados linha a linha, mas treinados em vastas quantidades de dados. Aqui, o impacto é real e inegável. O ciclo de desenvolvimento de sistemas mudou e, com ele, muda também o papel do engenheiro, do projetista, do gerente de produto e do decisor público.

O ponto de virada, contudo, está na camada intermediária: o que Huang chama de AI factories. Supercomputadores que consomem energia em larga escala e produzem tokens continuamente, em operações cuja lógica econômica se aproxima mais da indústria de base do que da de software. E é aqui que a visão começa a pedir contrapontos mais sérios.

Primeiro, porque estamos naturalizando a ideia de que inteligência se fabrica com energia elétrica, como se a única variável fosse o acesso a datacenters. Isso ignora externalidades fundamentais. O consumo energético projetado para essa nova camada de infraestrutura cresce exponencialmente, em um momento em que sistemas elétricos ainda lutam para dar conta da transição energética e da estabilidade de redes. Em termos simples: uma fábrica de IA de 1 GW pode custar algo na ordem de grandeza da centena de bilhões de reais. Mas quanto custa a energia que ela exigirá ao longo de sua vida útil? E qual é a real origem dessa energia?

Segundo, porque o modelo produtivo descrito pressupõe concentração. Não é trivial que a metáfora usada para o futuro digital seja uma fábrica — ela carrega consigo economias de escala, barreiras de entrada e centralização de poder. Quem controlar os tokens, controlará os fluxos de decisão de outros setores. E neste ponto, os riscos deixam de ser tecnológicos e passam a ser estratégicos. A divisão global do trabalho pode se redesenhar não apenas em torno de minerais críticos, mas em torno de capacidade computacional instalada.

No plano das aplicações, Huang é otimista: educação, saúde, finanças, manufatura — tudo será transformado. Também aposto nisso. Mas ao apresentar a IA como ferramenta de aumento de produtividade universal, ele contorna um ponto estrutural: a assimetria de acesso. Poucos países (e poucas empresas) conseguirão de fato operar essas “fábricas invisíveis” no curto e médio prazo. A maioria dependerá de infraestrutura, modelos e até decisões tomadas por terceiros, a milhares de quilômetros de distância. Em nome da “autonomia estratégica”, talvez seja hora de incluirmos IA e computação de alto desempenho nas agendas de política industrial e de inovação tecnológica — antes que nossa dependência seja irreversível.

No campo do trabalho, a fala de Huang soa bem-intencionada, mas deliberadamente ingênua. Ele afirma que “não é a IA que vai tirar seu emprego, mas quem souber usá-la”. Verdade parcial. A mudança de paradigma exige mais do que “aprender a usar IA”. Ela requer políticas públicas, requalificação massiva, redesenho de sistemas educacionais e, sobretudo, uma compreensão do novo papel das profissões técnicas e dos ofícios industriais. É reconfortante ouvir que eletricistas, encanadores e carpinteiros serão protagonistas do novo ciclo. Mas quem está investindo — de fato — na formação desse contingente?

Ao fim, o que Huang descreve não é apenas uma nova tecnologia, mas um novo regime técnico-econômico. Um regime em que decisões estratégicas, industriais e até geopolíticas orbitam em torno da capacidade de gerar e aplicar tokens — o novo aço da era digital. Por isso, mais do que entusiasmo, o momento pede lucidez.

Engenheiros, formuladores de políticas e tomadores de decisão precisam olhar para essa revolução com o mesmo rigor com que analisariam a construção de uma usina hidrelétrica ou a concessão de uma rodovia: onde está a infraestrutura? Quem controla os insumos? Qual é a externalidade líquida? E, principalmente: quem definirá os padrões que vão reger essas novas fábricas invisíveis?

Sem essas perguntas, corremos o risco de embarcar na narrativa encantadora das fábricas de tokens sem compreender plenamente as suas consequências estruturais. Em vez de garantir autonomia e competitividade, podemos reforçar dependências tecnológicas e econômicas difíceis de reverter no futuro.

Cabe, portanto, uma postura simultaneamente ambiciosa e vigilante. Investir em capacitação e pesquisa é urgente, assim como discutir o consumo de energia, as concentrações de mercado e os critérios éticos para robôs movidos à inteligência artificial.

THE HILL & VALLEY FORUM. NVIDIA CEO Jensen Huang | Rebuilding Industrial Power: AI Factories & the Return of US Manufacturing. YouTube, 3 mai. 2025. 1h05min26s. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=nkhrEnuZi20. Acesso em: 4 maio 2025.

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* George Paulus Dias é engenheiro de produção pela Escola Politécnica da USP, mestre e doutor em Logística e Educação com Jogos. É empreendedor na área de sistemas de informação e educação. Acumulou 20 anos de experiência docente.
É conselheiro do Instituto de Engenharia onde também coordena o GT de Bioeconomia Nacional.