Uma defesa apaixonada do pensamento matemático

Leia um trecho do livro “O Poder do Pensamento Matemático”, de Jordan Ellenberg, que faz uma apaixonada defesa do ensino da matemática usando exemplos do dia a dia e até histórias de guerra:

“Neste exato momento, numa sala de aula em algum lugar do mundo, uma aluna está xingando o professor de matemática. O professor acaba de lhe pedir que passe uma parte substancial de seu fim de semana fazendo cálculos. Ela não vê qual o sentido disso, e é o que diz ao professor.

E o professor, provavelmente, responde algo do tipo: ‘Eu sei que para você parece bobagem, mas, lembre-se, você não sabe que carreira vai escolher. Pode ser que você não veja a relevância agora, mas talvez trabalhe numa área em que seja realmente importante saber como fazer esses cálculos de forma rápida e correta’.

Poucas vezes essa resposta satisfaz a aluna. Porque é mentira. E o professor e a aluna sabem que é mentira. Felizmente, existe uma resposta melhor. Ela é mais ou menos assim: ‘Esses cálculos são para a matemática a mesma coisa que trabalhar com pesos e fazer ginástica são para o futebol.

Se você quiser jogar futebol — quer dizer, jogar mesmo, em nível de competição —, vai ter de fazer um monte de exercícios chatos, repetitivos e aparentemente sem sentido. Nunca veremos ninguém em campo levantando halteres nem correndo em zigue-zague entre cones de trânsito. Mas vemos os jogadores usando a força, a velocidade, a percepção e a flexibilidade que desenvolveram fazendo esses exercícios, semana após semana, de forma tediosa’.

Com a matemática acontece mais ou menos a mesma coisa. Pode ser que você não trabalhe nem pense em seguir uma carreira com orientação matemática. Tudo bem — a maioria das pessoas não quer esse tipo de carreira. Mesmo assim, a matemática pode ser útil. Provavelmente já é, mesmo que você não perceba. A matemática está entrelaçada à nossa forma de raciocinar.

E nos torna melhores em muita coisa. Saber matemática é como usar um par de óculos de raios X, que revelam estruturas ocultas sob a superfície caó­tica do mundo. Mesmo que eu fizesse à minha aluna esse discurso motivacional, ela ainda poderia — se fosse afiada — não se convencer. ‘Isso soa muito legal, professor’, ela diria. ‘Mas é uma coisa bem abstrata.’ Vamos, então, falar de coisas mais práticas.

Essa história, como muitas outras da Segunda Guerra Mundial, começa com os nazistas expulsando um judeu da Europa e termina com os nazistas lamentando esse ato. Abraham Wald nasceu em 1902, na cidade que na época se chamava Klausenburg e era parte do Império Austro-Húngaro.

Neto de rabino e filho de um padeiro, o jovem Wald logo demonstrou talento na matemática. Foi admitido na Universidade de Viena e, mais tarde, emigrou para os Estados Unidos.

Uma vez em Nova York, Wald fez parte, durante a Segunda Guerra, do Grupo de Pesquisa Estatística (SRG, na sigla em inglês), um programa sigiloso que mobilizava o poderio dos estatísticos para o esforço de guerra — algo semelhante ao Projeto Manhattan, exceto porque as armas desenvolvidas eram equações, e não explosivos.

Wald e os furos de bala

O talento matemático ali disponível correspondia à gravidade da tarefa. Nas palavras de W. Allen Wallis, diretor do SRG, foi ‘o mais extraordinário grupo de estatísticos já organizado, levando em conta tanto a quantidade quanto a qualidade’. Frederick Mosteller, que mais tarde fundaria o Departamento de Estatística de Harvard, estava lá.

Como também Leonard Jimmie Savage, o pioneiro da teoria da decisão. Norbert Wiener, matemático do Instituto Tecnológico de Massachusetts e criador da cibernética, dava uma passada por ali de tempos em tempos. A esse grupo se juntava Milton Friedman, futuro ganhador do Nobel de Economia, que se tornava assim a quarta pessoa mais inteligente na sala.

O mais inteligente era Wald. Um dia, os matemáticos receberam uma questão dos militares. Eles queriam blindar seus aviões contra os caças inimigos. Mas a blindagem tornava as aeronaves mais pesadas, e aviões mais pesados são mais difíceis de manobrar e usam mais combustível. Blindar demais os aviões é um problema; blindar de menos, também.

Em algum ponto intermediário há uma situação ideal. Os militares foram ao SRG com alguns dados que julgaram úteis. Quando os aviões voltavam de suas missões, estavam cobertos de furos de balas. Mas os danos não eram distribuídos uniformemente. Havia muitos furos na fuselagem e quase nenhum no motor. Parecia fazer sentido, portanto, blindar mais a fuselagem. Será?

A blindagem, segundo Wald, não deveria ir aonde os furos de bala estavam, mas aonde os furos não estavam. A grande sacada foi simplesmente perguntar: onde estavam os furos de bala que faltavam? Eles estavam nos aviões que faltavam. A razão de os aviões voltarem com poucos pontos atingidos no motor era que os muito atingidos no motor simplesmente não voltavam.

A blindagem, para Wald, deveria ser feita nas partes onde não havia furos. Suas recomendações foram rapidamente materializadas. Uma coisa que os militares compreendem bem é que os países não vencem guerras somente sendo mais corajosos do que o outro lado.

Os vencedores, em geral, são os caras que têm 5% menos aviões derrubados, ou que utilizam 5% menos combustível, ou que nutrem sua infantaria 5% mais com 95% do custo. Esse não é o tipo de coisa que figura nos filmes de guerra, mas é o que constitui a própria guerra. E há matemática em cada passo do caminho.

Por que Wald viu o que os oficiais, que tinham conhecimento e com­preen­são muito mais vastos dos combates aéreos, não conseguiram? Tudo volta para seus hábitos matemáticos. Um matemático sempre pergunta: ‘Quais são as premissas? Elas se justificam?’ Essa maneira de pensar pode parecer irritante, mas é, sem dúvida, muito produtiva.

Os oficiais tinham uma premissa involuntária: os aviões que voltavam eram uma amostra aleatória de todos. Para um matemático, a estrutura subjacente ao problema do furo de bala é um fenômeno chamado de ‘viés de sobrevivência’, que sempre ressurge em variados contextos. Uma vez que se tenha familiaridade com ele, como Wald tinha, é possível percebê-lo facilmente onde quer que ele se esconda, até na avaliação de investimentos.

A análise de fundos de investimento é uma área em que ninguém quer estar nem um pouquinho errado. Uma variação de um ponto percentual pode ser a diferença entre uma boa alternativa e uma roubada. A empresa de análise de investimentos americana Morningstar criou uma categoria de fundos chamada Large Blend — aqueles que aplicam em ações de grandes empresas da bolsa americana.

De acordo com seus cálculos, esses fundos cresceram, em média, 178,4% de 1995 a 2004 — quase 11% ao ano. Um ótimo investimento para os padrões americanos, não? Não exatamente. Um estudo de 2006, feito pela gestora Savant Capital, lançou luz sobre esses números.

Para chegar ao resultado, a Morningstar pegou todos os fundos classificados como Large Blend e viu quanto cresceram no prazo de dez anos. Mas esqueceu uma coisa: os fundos que não estavam ali. Fundos não existem para sempre. Alguns florescem, outros morrem. Os que morrem, de forma geral, são aqueles que não dão dinheiro.

Logo, julgar o desempenho de uma categoria de fundos por uma década a partir daqueles que ainda existem ao fim dos dez anos é como contar os furos de bala nos aviões que retornam. Se os fundos mortos fossem incluídos no cálculo, a taxa de retorno cairia para 134,5%, média anual inferior a 9%. O tamanho do efeito de sobrevivência pode ter surpreendido os investidores, mas provavelmente não teria causado surpresa a Abraham Wald.”

Jordan Ellenberg é professor de matemática na Universidade de Wisconsin.

Autor: Revista Exame