Por Reginaldo A. de Paiva – São Paulo: Onde Judas Perdeu as Botas

Por REGINALDO A. DE PAIVA* Onde o Judas perdeu as botas: Velha expressão popular, a um só tempo referência a sentimentos de culpa, na tradição cristã, e a pressupostos de delírios relativistas.

Exagero? O local em que Judas, apóstolo traidor, perdeu as botas fica, na tradição popular, em qualquer lugar e em parte alguma. Nunca localizado junto ao observador, que o situa tão longe quanto longe seja o seu conceito de lonjura.

Para estas mal traçadas linhas (*), cartesiano que sou – quando me convém, claro – chamemos o lugar onde Judas perdeu as botas de JPB.

É característica de um JPB ser habitado por gentes estranhas, que falam com estranhas entonações e sotaques, detentoras de estranhos hábitos, no vestuário (que seja), na alimentação (quase sempre) e nas relações sociais (com certeza).

Para alguém postado nas imediações do Largo Ana Rosa, em São Paulo, a Praça da Igreja de Cima, em Buriti Alegre (GO) é um JPB; no mesmo tempo e no espaço da Praça da Igreja de Cima, a Praça Ana Rosa é um JPB.

Como um par de spins das teorias quânticas, os conceitos giram em sentidos opostos, estando os dois observadores cobertos de razão, porque é assim que é a relatividade de um JPB.

Por ter nascido perto da Praça da Igreja de Cima – minha casa era em “distancia de grito” da praça – e ter me mudado para as imediações da Praça Ana Rosa, que seja nas imediações, como assim as entendem os paulistanos – tornei-me um JPB entre JPBs.

Descobri, nauseado, que a cidade de São Paulo se espraiava às margens de rios de águas pretas, viscosas, com cheiros nauseabundos e sem peixes. Soube que aqui se comia camarão cru e carne mal passada (saingnant, comme il faut) e se desconheciam os irresistíveis paladares lenhosos do pequi e os amargos sabores da guariroba (e, que ofensa, os daqui chamavam guariroba de palmito amargo).

Aqui devoram-se maçãs e peras recolhidas de grandes pilhas em estandes de supermercados e se ignora a acidez travosa dos cajus e a suavidade açucarada das gabirobas colhidas diretamente dos galhos.

Apesar de me ter acostumado aos rios sem peixes, sem águas claras, e descoberto os prazeres dos pratos de peixes crus e de carnes mal passadas, continuo a não oferecer nenhuma resistência a, quando chances surgem, devorar uma pratada de arroz com pequi e guariroba.

Dos cajus e gabirobas guardo os sabores de memória. Na próxima invasão de bárbaros a esta capital, espero que um batalhão de cozinheiros das Gerais invada os restaurantes dos Jardins.

Ao meu estilo boiadeiro de falar, em dialeto de consoantes viris e vogais carregadas, me era respondido em linguajares de consoantes sussuradas e vogais adamadas.

Explico-me: meus Rs saem dos pulmões passando pelo fundo da garganta em lixas grossas; os Ds, os Ts e outras consoantes passam pela boca sem que a língua, presa aos dentes inferiores, ofereça resistência. Ouço, com certo desconforto, os Rs paulistanos sussurados, como brisa deslizando em línguas de veludo, sons que fazem da ferragem e da presença fortemente metálica das ferrovias apenas uma “ferovia”. Aqui, os Ds, Ts e outras consoantes são pronunciadas com a língua roçando, muito levemente, os dentes superiores, com tal suavidade que quase lhes sobram apenas as vogais.

De meus primeiros tempos na Capital, quando me perguntavam o nome eu dizia Reginaldo di Paiva e eles escreviam di Paiva. Eu corrigia é D e E. Eles me olhavam com olhares críticos e escreviam de Paiva. Com muito custo aprendi a dizer: de Paiva, embora as vogais E e O ainda me soem, como lá pras bandas das Gerais, um pouco afetadas. Por isso, lá, nas barrancas do caudaloso rio Paranaíba, os substituímos por I e U. Falamos Casa du Juão, falamos panu di viludu.

Creditei a uma certa herança europeia o sotaque paulistano. Pensava eu, no Hemisfério Norte as pessoas evitam muito abrir a boca para que o ar de quase gelo não lhes congele a garganta.

Teoria errada, porque as mesmas consoantes pálidas e anêmicas também vieram com os migrantes nordestinos, tudo contribuindo para fazer de São Paulo a capital das consoantes fracas.

Dá-se que também vieram migrantes do interior do Estado, que muito gostam de trocar todos os Ls por Rs. Eles até dizem que o Parmêra é um time de futebor. Com eles veio um curioso diálogo de barbearia, um

exercício matemático nos salões de barbearia de Botucatur e redondezas. Feita a barba, o barbeiro pergunta pela preferência do cliente:

  • Arco o tarco? (álcool ou talco?). A resposta: Verva. (água Velva, uma tradicional loção após barba).

Se o barbeiro pergunta:

  • Verva o arco? O cliente responde: Tarco. E se o barbeiro pergunta:
  • Verva o tarco?, o cliente responde: Arco.

Como se vê, um divertido jogo matemático, combinações de 3 elementos dois a dois, com a resposta recaindo sempre sobre o elemento excluído.

Indoutra história dos agradáveis ares de Piracicaba; um qualquer caminhante, por uma rua qualquer, visualiza um amigo pela janela aberta de sua casa e, em caloroso cumprimento, lhe pergunta:

–  Firme?

O amigo lhe responde, com entusiasmo:

–  Não! Futebor!

Mas também vieram japoneses e chineses para São Paulo, gente que desconhece os encontros consonantais e não conseguem pronunciar os Rs. Intercalam vogais sempre que uma consoante se apresenta em dobro ou desacompanhada e, ao contrário dos de Piracicaba, trocam os Rs pelos Ls. A propósito, falam a poloposito, o Vasoco pelodeu do Sano Paulo. É por isso, pensei lá com meus botões,

  • nada a estranhar, lá nos Goiás a gente muito conversa c’os botões das camisas – que os japoneses não imigraram para a Alemanha e outros países nórdicos, preferindo países onde abundam as vogais como nas escritas de sua língua natal. Não consigo imaginar um japonês falando palavras triviais do idioma tedesco, como oftgetäuschte, westfälischer, unentbehrlichste.

E também aqui chegaram árabes, fantasiados de turcos por falta de uma identidade nacional, falando uma língua onde não existem Ps, Vs nem Ãs nem encontros consonantais. Fanáticos por futebol, contam com orgulho que o Basco berdeu do Zan Baulo. E também falam An-ran-ga-baú.

Tudo isto considerado, fica muito engraçado ouvir um certo ator carioca de televisão declarar que, para interpretar, em uma novela, com São Paulo por cenário, que estaria treinando o sotaque paulistano e fugindo da praia para perder o bronzeado.

– coisa muito rara já que a televisão decidiu que o Brazilian way of live é o que se vê apenas em algumas poucas quadras da praia de Ipanema –

Esqueceram de contar-lhe que o sol se espraia sobre todo o planeta e que, para bronzear-se, praias não são imprescindíveis e que não existe “o” sotaque paulistano. Tudo o que ele precisaria fazer era substituir os Xs de seus textos por Ss (ao invés de falar, por exemplo, axi ruaxi, por as ruas. Ou perguntar ao diretor da novela em que bairro de São Paulo mora seu personagem, ainda que, pela sua fala, esta informação lhe seria de todo inútil.

A desinformação do ator carioca lembra-me o relato de um amigo publicitário que, ao filmar nos EUA, precisou de um personagem policial e recebeu do ator contratado uma indagação curiosa:

“policial de onde, porque, dependendo do bairro, o comportamento do policial muda”.

Os atores americanos são extremamente profissionais, concluiu-me ele seu relato. Creio que é muito exigir, dos atores, para a afoiteza das filmagens das TVs brasileiras.

São Paulo é uma cidade-esfinge, um JPB até mesmo para o pessoal do Rio, tão próximo geograficamente, mas tão distante quanto se queira da cultura local.

Ao contrário do que se vê hoje nas TVs, o humor paulistano não é escrachado. Quem ouviu Pagano Sobrinho na televisão sabe a distancia que o separa, por exemplo, de Dercy Gonçalves.

Os humoristas paulistanos são, digamos, muito peculiares. Relato algumas das lendas que circulam sobre um controvertido quatrocentão, quem, se não me engano, se chamava Lara Mesquita. Se não for esse o seu nome, não faz mal. Para a tradição oral, qualquer nome é um nome bom.

Quando circulou por aqui, a fala do Tom Jobim – “o problema de São Paulo é que lá você anda, anda, anda e nunca chega na Praia de Copacabana”, o que fez o Lara?

  • Naquela época, nos anos 60, a rua Augusta era a passarela dos play-boys paulistanos. Lara, considerando que, não sendo praia nenhum atributo urbano, por ela circulou a bordo de um caminhão de areia tendo, na areia, guarda-sóis, esteiras e deslumbrantes paulistanas em “traje de maiô”. Nas laterais da carroceria, faixas explicavam que esta era uma praia de paulista.

(traje de maiô: expressão usada por Assis Valente no antológico samba E o mundo não se acabou).

  • Outra do Lara: teria sobrevoado, de helicóptero, a mansão de um amigo, em dia de festa, para a qual não fora convidado, despejando sacos de Sonrisal na
  • Seria dele a autoria da frase Cão Fila – Km 26, presente, por muito tempo, em muros, morros e estradas da Região Metropolitana de São Paulo. Tão divulgada que se tornou capa de um LP de Rock. No km 26 da Estrada do Alvarenga, em uma ilha da Represa Billings, o Lara possuía um canil de cães

Se você ouvir (e gostar de) Isaurinha Garcia (ou mesmo de Germano Matias) cantando; se você assistir a velhos programas de Pagano Sobrinho e entender o que ele estiver falando, meus pêsames, você estará no Brás dos anos 50 e acaba de ser mordido pelas musas que atormentaram Mario de Andrade: nunca mais deixará de amar São Paulo.

É como uma velha lenda da cidade de Goiás: quem bebe da água local não abandona mais a cidade.

Cidade? Acho que não; São Paulo é um JPB. Aqui, foi onde todos perdemos as botas.

(*) No tempo em que os animais não falavam, quando os amigos distantes se comunicavam por cartas manuscritas, recorria-se a modelos de cartas. Os mais famosos, por pedantes e jecas, sugeriam que se começassem as cartas com:

“Escrevo-lhe estas mal traçadas linhas para dar minhas notícias e saber das suas”

A expressão mal traçadas vem daí.

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REGINALDO A. DE PAIVA*

Diretor secretário da Diretoria Executiva (2014/2015); representante do Instituto de Engenharia na Comissão Pré-Centro e na Operação Urbana Águas Espraiadas e na Comissão Licitatória de Concessões Rodoviárias (Secretaria de Estado dos Transportes); membro do Conselho Editorial da Revista Engenharia.

*Os artigos publicados com assinatura, não traduzem necessariamente a opinião do Instituto de Engenharia. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.