A História do Processo de Lodo Ativado

Por José Eduardo Cavalcanti*

A história do processo de lodos ativados, idealizado há 106 anos atrás, é praticamente desconhecida daqueles que militam na área de tratamento de esgotos. No entanto, na medida em que bilhões de dólares têm sido investidos no seu aprimoramento, principalmente desde que foi consolidado em 1914, ano em que se cunhou tal denominação, é útil conhecer um pouco das origens deste método de tratamento a de modo a poder compara-lo com os processos atuais mais bem “engenheirados” mas cuja essência permanece a mesma.

Para entender o impacto que o lodo ativado teve na tecnologia de tratamento de águas residuais, deve-se primeiro conhecer os fatos que antecederam a esta descoberta ocorridos a partir de meados do século XIX.

Primórdios

Naquele período, a preocupação com o tratamento dos esgotos surgiu primeiramente na Inglaterra, após a epidemia de cólera ocorrida em 1848, com 25.000 vítimas fatais. Esse país, devido à pouca extensão de seus rios e ao crescimento acelerado de algumas cidades e do parque industrial, foi um dos primeiros a sofrer as consequências da poluição hídrica, decorrente do lançamento dos esgotos (sem tratamento), nos corpos d’água. Foi também pioneiro na promulgação das primeiras leis de saneamento e Saúde Pública.

Somente em 1815, em Londres, os esgotos começaram a ser lançados em redes coletoras; em Hamburgo, em 1842, em Paris, em 1880. Nesta época desenvolveram-se processos para extrair nutrientes dos esgotos para irrigação: “A.B.C. Process (alum, blood and clay)”, um método para desodorização e precipitação de lodos pela adição de alúmen, carvão e argila no esgoto bruto e tanques sépticos.

Em 1860, aparece o dispositivo de Mouras, aparelho com apenas uma câmara com a função de sedimentação e digestão anaeróbia do lodo com funcionamento precário devido a interferência destes dois processos.

Entre o século XIX e o início do século XX, com o grande desenvolvimento das cidades, o exemplo inglês foi seguido por outros países que começaram a se preocupar com o tratamento dos seus esgotos e, como resultado, foi implantada a famosa Estação Experimental Lawrence, em Massachusetts, nos EUA, que foi uma instalação bastante singular destinada à verificação experimental de diferentes procedimentos possíveis de tratamento de águas residuais.

Com base nos experimentos verificados em Lawrence emergiu a ideia de se dividir os tanques sépticos em dois compartimentos separados, porém interligados por uma única fenda por onde passava o lodo. Entretanto, a primeira realização de um tanque nestas condições deve-se a Travis de Hampton, Inglaterra, que concebeu o Tanque Hidrolítico ou “Travis Colloider” em 1903, porém não se considerava uma separação integral entre as duas câmaras, porquanto era recomendada a introdução de 1/7 da vazão afluente na câmara de digestão. Em 1906, Karl Imhoff, com base na ideia de Travis, idealizou um novo tanque que passou a ser aplicado nas instalações de Emscher na Alemanha e que posteriormente passou a levar seu nome.

Os sistemas físico-químicos eram talvez um pouco mais populares à época, incluindo diluição básica, sedimentação, tratamento químico e tratamento eletrolítico (ou seja, o chamado processo de oxidação direta.

No Brasil, a adoção de tratamentos biológicos de esgotos encontrou forte oposição por parte de Saturnino de Brito, famoso engenheiro sanitarista e patrono da Engenharia sanitária brasileira que por ser positivista se opunha às teorias de Pasteur contrárias à geração espontânea que negava a importância fundamental dos micróbios. Em consequência, conduzia seus projetos de depuração de esgotos recomendando tratamentos físicos extensivos (irrigação de terrenos, disposição no mar) ou tratamentos estritamente químicos.

No Reino Unido, a Royal Commission on Sewage Disposal em 1898 foi um marco no desenvolvimento da tecnologia no tratamento de esgotos. Seu papel foi coordenar as atividades que levaram à uma melhor compreensão dos fatores inerentes à qualidade das águas e aos novos procedimentos no tratamento dos esgotos.

Um dos resultados mais conhecidos da Comissão foi a medição do grau de poluição das águas e esgotos visando determinar a “queda de oxigênio” em um rio através do teste de DBO, 5 dias, período considerado á época adequado para rios da Inglaterra e Irlanda porque este seria supostamente o tempo mais longo que a água do rio leva para viajar da nascente ao estuário.

Fundamentos do processo de lodo ativado

Outro dos processos estudados na Estação Experimental Lawrence foi a aeração de águas residuais municipais em diferentes arranjos. Com base nestes experimentos, Edward Ardern, químico da estação de tratamento de águas residuais de Manchester – Davyhulme, e seu colega de trabalho, William Locket repetiram na Inglaterra os ensaios de aeração com águas residuais que ocorriam na Estação Experimental de Lawrence.

Entre 1913 e 1914, foram realizados experimentos em escala de laboratório na estação de tratamento de águas residuais de Manchester – Davyhulme. Como primeiros reatores – bacias de aeração em escala de laboratório – foram utilizadas garrafas de vidro. Para evitar o crescimento de algas, as garrafas foram cobertas com papel pardo para proteger o conteúdo da luz do dia. Esgoto de diferentes distritos de Manchester foi usado para esses experimentos.

Contrariamente aos experimentos de Massachusetts, nos testes de aeração de Manchester, o sedimento após a decantação foi deixado na garrafa e uma nova dose de água residual foi adicionada ao sedimento para o próximo lote. Lockett e Ardern descobriram logo que a quantidade de sedimento aumentava com o aumento do número de lotes. Concomitantemente, o tempo de aeração necessário para “oxidação total” do esgoto (oxidação total era um termo usado para descrever a remoção de orgânicos degradáveis e para nitrificação completa).

Por meio dessa técnica de aeração em lote repetida com o sedimento remanescente na garrafa, Lockett e Ardern foram capazes de encurtar o tempo de aeração necessário para “oxidação total” de semanas para menos de 24 horas, o que tornou o processo tecnicamente viável. O sedimento formado durante a aeração do esgoto foi denominado lodo ativado por sua aparência e atividade. Lockett e Ardern falaram sobre seus experimentos e resultados na reunião da Sociedade da Indústria Química realizada em 3 de abril de 1914 no Grand Hotel, Manchester.

Os resultados foram publicados posteriormente em uma famosa série de três artigos:

• Ardern, E., Lockett, WT (1914a) Experiments on the Oxidation of Sewage without the Aid of Filters. J. Soc. Chem. Ind., 33, 523.

• Ardern, E., Lockett, WT (1914b) Experiments on the Oxidation of Sewage without the Aid of Filters, Part II. J. Soc. Chem. Ind., 33, 1122.

• Ardern, E., Lockett, WT (1915) Experiments on the Oxidation of Sewage without the Aid of Filters, Part III. J. Soc. Chem. Ind., 34, 937.

Até 1914, o processo de lodo ativado tinha sido testado na estação de tratamento de águas residuais Manchester – Davyhulme em larga escala, em uma planta-piloto “móvel”. Embora a maioria das partes da unidade planta-piloto fossem feitas de madeira e o modelo fosse colocado no chassi de carroça puxada por cavalos, esta instalação já exibia as características mais marcantes do processo de lodo ativado que conhecemos hoje.

Desde o início, ambos os arranjos básicos do processo de lodo ativado foram testados, ou seja, os arranjos de fluxo contínuo com clarificadores separados e reciclagem de lodo ativado e o arranjo fill-and-draw, hoje conhecido como SBR. Os modelos da Davyhulme foram equipados com aeração por ar difuso. Os difusores de bolha grossa logo foram substituídos por elementos de cerâmica de bolha fina.

Simultaneamente com os experimentos de Manchester em 1914, o processo de lodo ativado SBR foi testado em uma planta em escala real em Salford. O primeiro processo de lodo ativado de fluxo contínuo em escala real foi colocado em operação para a cidade de Worcester em 1916 por Jones e Attwood, Ltd.

Os difusores usados nas bacias de aeração das primeiras plantas de lodo ativado sofreram rápido entupimento. Por esta razão, em 1916 Howarth, o gerente da WWTP em Sheffield, substituiu a aeração por ar difuso com a aeração mecânica usando pás de eixo horizontal de rotação vertical. O primeiro sistema de aeração mecânica em escala real entrou em operação em 1920. Este chamado sistema de aeração Sheffield de 1924-1925 ainda é preservado e usado na WWTP Stockport, que é provavelmente a mais antiga, ainda operava planta de lodo ativado no mundo.

Os aeradores owarth paddle inspiraram Kessener a desenvolver escovas de aeração, usadas pela primeira vez na planta de tratamento de águas residuais de abatedouro em Appeldoorn, Holanda, em 1927. Ao mesmo tempo, Bolton, na Inglaterra, estava empenhada no desenvolvimento de turbinas de aeração. As primeiras turbinas Simplex˛ da Ames Crosta, Ltd. foram instaladas na ETAR de Bury em 1925.

O processo de lodo ativado encontrou logo sua aplicação também fora do Reino Unido. A primeira planta experimental de lodo ativado nos EUA foi construída em Milwaukee em 1915.

Karl. Imhoff realizou os primeiros testes com processo de lodo ativado em 1924 e a primeira planta em escala real foi construída em 1926 em Essen-Rellinghausen.

Mesmo antes da Segunda Guerra Mundial, o processo de lodo ativado atingiu outros continentes, além da Europa e da América. Foi instalado, por exemplo, em Bangalore, Índia; Adelaide – Glenelg, Austrália e em Joanesburgo na África do Sul.

Duas controvérsias adicionais pautaram os fundamentos do processo de lodo ativado suscitando intensos debates técnicos:

O primeiro dizia respeito a escolha dos sistemas de aeração, se difusores ou mecânicos. O segundo debate girou em torno do comportamento fundamental do processo, em termos de mecanismos físico-químicos versus biológicos.

A questão da aeração foi uma preocupação significativa desde o início e gerou um debate acirrado. Mesmo os primeiros pesquisadores de lodo ativado estavam perfeitamente cientes de que a demanda de energia necessária teria um papel dominante na determinação da relação custo-benefício do processo. Por um lado, vários investigadores acreditavam que todo o transporte de oxigênio ocorria na superfície do líquido, de modo que a aeração mecânica servia como o mecanismo ideal de transferência de gás.

Essa visão foi contrariada por outro grupo que considerou a aeração difusa como o sistema ideal. No entanto, em uma série clássica de três artigos publicados durante 1936 e 1937, Ridenour e Henderson exploraram exaustivamente cada opção e concluíram que cada uma tinha seus méritos ou deméritos específicos. Embora eles indicassem que uma unidade mecânica poderia fornecer transporte de gás nominalmente superior a uma demanda de energia equivalente, a seleção foi considerada um fator específico do local.

O segundo grande debate girou em torno do mecanismo fundamental de lodo ativado; se era uma operação físico-química ou um processo biológico. Baly teorizou que a carga diferencial entre coloides de esgoto e matrizes de flocos resultaria em uma atração eletrostática e consequente clarificação. Em linhas semelhantes, Theriault considerou o processo de lodo ativado como mecanismo de biozeólito. Vários outros pesquisadores acreditaram que os compostos de ferro desempenharam um papel dominante no processo de oxidação. O refinamento subsequente a esta premissa sustentou que o ferro
funcionava como um transportador de oxigênio para facilitar a oxidação subsequente.

O fato é que o processo de lodos ativados poderia ter se popularizado rapidamente para ser o principal processo de tratamento de águas residuais a ponto de tratar milhões de m3 de esgotos em apenas alguns anos a partir de sua formulação. No entanto, apesar dessa intensidade inicial, o lodo ativado não encontrou aplicação generalizada até a década de 1950.

Isto se deveu a briga por patentes, ou seja, este litígio reduziu a maior parte do ímpeto técnico. Enquanto Ardern e Lockett apresentaram seus resultados de pesquisa em maio de 1914, Jones e Attwood (isto é, Jones e Attwood, Ltd.) já haviam entrado com quatro pedidos de patentes.

Somente a partir dos anos 50 foi que houve um grande desenvolvimento tecnológico do processo e que tem perdurado ao longo do tempo.

Atualmente são disponíveis métodos aeróbios de tratamento que transcendem o processo clássico de lodo ativado, embora mantendo os mesmos conceitos básicos propostos há mais de 100 anos. Desta forma, os processos atuais de lodo ativado modificados permitem além da remoção de DBO, também nitrificação, denitrificação e remoção de fósforo através de modernas tecnologias como SBRs, MBR, MBBR, MABR, BARDENPHO, UCT, IFAS, e suas variantes.

(Fontes: IWWA – The International Water Journal Association – Activated Sludge – 100 Years and Couting; Water Pollution Control Federation – Reflexões sobre as sete décadas da história do AS de James E. Alleman e TBS Prakasam; Azevedo Netto – Curso de tratamento de águas residuárias.)

________________________________________________________________________

*José Eduardo W. de A. Cavalcanti

É engenheiro consultor, diretor do Departamento de Engenharia da Ambiental do Brasil, diretor da Divisão de Saneamento do Deinfra – Departamento de Infraestrutura da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), conselheiro do Instituto de Engenharia, e membro da Comissão Editorial da Revista Engenharia

E-mail: [email protected]

*Os artigos publicados com assinatura, não traduzem necessariamente a opinião do Instituto de Engenharia. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo