Sem apoio, projeto une tecnologia e design para promover reúso de água

Com linhas modernas, a grande caixa azul e branca parece algo saído de uma prancheta da NASA. Formada por chapas metálicas com bordas curvas, seu design minimalista ganhou prêmios no Brasil e no exterior. Por trás de toda a elegância, porém, o serviço é dos mais pesados: a estação de tratamento compacta Renascente, da Perenne, de São Paulo, se dedica a transformar água suja e usada em um líquido cristalino, pronto para nova utilização. De um lado, entram dejetos de esgoto; do outro, sai água que serve para uma grande variedade de usos. 

De cara, a unidade da Perenne remete a uma iniciativa recentemente divulgada por Bill Gates. Chamado Omni Processor, o projeto do fundador da Microsoft consiste em uma volumosa estrutura que foi anunciada na internet com a chamada: “Esta engenhosa máquina transforma fezes em água potável”. Ela começará sua operação em Dakar, capital do Senegal.
A tecnologia usada no processador de Gates “queima” o esgoto a temperaturas acima de 1000 graus. 

O resultado deste processo é condensado e tratado. A tecnologia da Perenne se baseia em processos físicos e biológicos, sem a necessidade de produtos químicos. A matéria orgânica do esgoto é degradada por microorganismos especialmente preparados. Uma membrana polimérica age depois como uma peneira finíssima, capaz de segurar até bactérias. Seu produto final não é potável, mas adequado para usos como limpeza e irrigação. 

Uma diferença importante entre o projeto da Perenne e outros do tipo (incluindo o de Gates) é a solução de design, uma aposta na ideia de que uma unidade de tratamento de esgoto e fezes pode ser também um objeto esteticamente inovador e agradável aos olhos. Estações desse tipo costumam ser estruturas volumosas que ficam longe da vista do público. Já o projeto da Perenne, que ocupa o espaço de uma vaga de carro, ficaria à vontade na frente de um shopping chique como o Iguatemi ou JK. 

Segundo o engenheiro Nelson Guanaes, fundador e presidente da Perenne, “não é tão fácil convencer o cliente a investir nisso. Com esse projeto, quisemos chamar a atenção, fazendo uma estação compacta e bonita que servisse como um outdoor para o tratamento”. 

A unidade pode proporcionar uma economia de até 30% na conta de água, diz o executivo. Em tempos de crise hídrica, uma vantagem mais do que bem-vinda. Surpreendentemente, a iniciativa ainda não decolou. Desde 2012, só foi construída uma única peça. 

De acordo com Guanaes, a intenção é tornar o projeto comercial e desenvolver uma fabricação industrial. Mas a empresa até agora teve dificuldade em obter financiamento para a produção em escala da unidade.

“Tem um mercado fantástico para esse produto”, acredita Guanaes. “Condomínios, shoppings, ou mesmo uma favela. É um local poluidor, que não é tratado, as pessoas moram ao lado dos córregos. Por que não tratar?”
Desenvolvido pela escritório de design Questto Nó, o projeto foi premiado na categoria “sustentabilidade” na Bienal Ibero-Americana de Design, em 2013 na Espanha, e no ano seguinte, no Green Good Design, uma das mais antigas premiações de design sustentável do mundo. 

A primeira e única unidade da Renascente custou R$ 500 mil para ser construída. A intenção da Perenne é que ela não seja vendida para estabelecimentos, mas instalada a custo zero, com a cobrança de uma “mensalidade” que seria, na verdade, metade do valor que a empresa economizaria na conta d’água (ou seja, metade dos 30% de economia proporcionada pela unidade). Outra vantagem mencionada pela empresa é o baixo consumo de energia do produto, equivalente ao de uma geladeira pequena. 

A Sabesp teria se interessado pelo projeto, afirma Guanaes, consequência de uma nova postura da concessionária. “Quero ver a Sabesp com outros olhos. Antes, a atitude deles seria ‘não pode, tá usando a água que eu vendi, a água é minha’. Hoje, acho que não. Acho que tão dizendo o contrário. 

Tão dizendo, ‘se cuida, porque não tenho água pra te dar’.” Procurada pela reportagem, a assessoria da Sabesp disse não ter conhecimento da estação. 

Escassez 

Perguntada sobre iniciativas de reúso que promove, a Sabesp citou um de grande porte: a Aquapolo, parceria sua com a Odebrecht Ambiental que gera água de reúso industrial. Instalado na fronteira de São Paulo com São Caetano do Sul, a Aquapolo pode produzir até mil litros por segundo, quantidade capaz de abastecer 300 mil pessoas. Atualmente, porém, só atende ao Polo Petroquímico do ABC paulista. 

Para o professor Ivanildo Hespanhol, da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP) e sumidade no tema água, o reúso é fundamental para enfrentar a escassez d`água. Autor de um projeto de cinco estações de reúso ao longo do rio Tietê, ele acredita que as soluções menores também são importantes: “containers com a tecnologia de membrana realmente ajudam. Se colocados em supermercados, shoppings, presídios, podem proporcionar grande economia”. Hespanhol, entretanto, não vê a Sabesp interessada em incentivar a reutilização da água. Para ele, a concessionária prefere apostar na busca por novas reservas. “Estamos seguindo o paradigma dos romanos, de 2.000 anos atrás, trazendo água de cada vez mais longe, de áreas hídricas distantes”, critica. 

No Brasil, onde a noção de que a água é recurso finito não foi assimilada pela população, o índice de reúso é de apenas 1% (em Cingapura chega a 30%). Para Guanaes, estimular o reúso de água tambem contribui para a educação ambiental. “A maioria das escolas da periferia tem uma fossa, que é poluidora”, diz Guanaes, da Perenne. “Vamos mostrar para as crianças que podemos botar esgoto não na rua ou na fossa, mas nesse equipamento para que ele seja usado no banheiro ou para irrigar uma planta.”

Autor: O Estado de S.Paulo