Nós e a força das águas

Em meados de dezembro de 2010, informações sobre nossa realidade (muitas vezes feia) , reunidas em meio século de vida profissional, foram transmitidas em meia hora de trajeto ao Viaduto do Chá, a uma linda e inteligente repórter que, em meio minuto colocou no ar, à 11/01/11, o que se encontra em “vídeo.globo.com” com o título “São Paulo precisa de plano de emergência para alagamentos”. 

Na caminhada ao mais paulistano dos viadutos foi comentado que:
-O Município de São Paulo tem cerca de 3 200 km de cursos d’água em sua área de 1 500 km², o que significa que, em média, a cada 700 m em qualquer direção, encontra-se um córrego, e isto é uma bênção de um relevo montanhoso, em formação há milhões de anos. Desses cursos d’água, uns 500 km já estão razoavelmente disciplinados demandando serviços de manutenção. Outros 1 000 km devem ser prioritariamente disciplinados o que, se houver real empenho do poder público, será trabalho duro para quatro décadas. 

-Nessa área, excessiva impermeabilização, ocupação inaceitavelmente desordenada (fruto principalmente de nossa ampla pobreza social) e chuvas cada vez mais intensas e de mais curto período entre sua previsão e seu início, constituem uma infeliz combinação rara de ser encontrada no planeta. 

-Há, muita erosão em extensas áreas desvegetadas e não protegidas, leitos fluviais assoreados e cheios de lixo, esgotos, entulho e construções irregulares (desde “bom padrão” até “favelas ciliares”),galerias fechadas onde deveriam existir canais abertos e outros males. 

-Há poucas áreas verdes na região urbanizada,observando-se que com a inclusão de nossas ainda existentes matas naturais (entre elas a nossa amada Serra da Cantareira, hoje ameaçada pelas mais vergonhosas invasões), o quociente dessas áreas pelo número de habitantes conduz a uma ilusória cifra superior ao internacionalmente recomendado. É o “mal das médias”, como a temperatura do indivíduo com os pés no forno e a cabeça na geladeira. 

-Há ainda insuficientes reservatórios de retenção de sólidos e de vazões (ridiculamente apelidados de “piscinões”).Os que existem foram Implantados corretamente. Infelizmente a manutenção tem sido falha. 

No futuro eles deverão ser acompanhados de medidas mitigadoras, por exemplo, de alguma forma, compensando-se os proprietários do entorno com isenção de IPTU, e os moradores com isenção de cobrança por fornecimento d’água e coleta tanto de esgotos como de lixo, etc. De outra parte, é preciso que se diga que, quem, por princípio, for contra tais dispositivos, está pelo menos na “contra mão da história”, pois, mais dia menos dias, com as devidas adaptações, parte da água neles reservável poderá ser adequadamente tratada para ser usada, para fins menos nobres do que para consumo humano. 

Também é preciso que se diga que os dito cujos nem sempre são a melhor solução integrada, como provavelmente é o caso de sua aplicação na Praça da Bandeira, de onde, pode partir uma galeria especial, com traçado a ser pesquisado, sob o nosso “Centro Velho”, direcionado ao canal do Tamanduateí, um pouco a jusante do Mercado Municipal. 

-Há insuficiente esforço em se preservar nossas remanescentes áreas de manancial. Um exemplo magnífico é o que nos Estados Unidos, especialmente no Estado de Nova Iorque, é feito. Os proprietários dos mananciais são remunerados (e rigorosamente fiscalizados) para não prejudicarem a capacidade de coleta natural da bacia e com isso não serem tentados a fazer o que em parte de nossos mananciais ocorreu. Junto a nossos mananciais houve venda da terra desvalorizada a “certas organizações” que tiveram “facilidade” em promover ocupações irregulares, onde, para nossa maior infelicidade, por serem “áreas de manancial” é vedada a implantação de estações de tratamento de esgotos! 

-Em nossas encostas crescem irregularmente as ocupações irregulares. À propósito, creio que à letra da lei que postula o direito de ir e vir,um Jurisconsulto poderá defender que o espírito da lei é de ir para onde ele possa viver dignamente e sem infringir os direitos de outros.Tal controle da migração deveria, por justiça, ser precedido de adequadas grandiosas medidas de âmbito nacional que realmente estimulassem a fixação das pessoas aos locais próximos de seu nascimento. Aliás, este último substantivo faz lembrar seu cognato, natalidade, e daí o que Bertrand Russel dizia:”Quem for contra o controle da natalidade não conhece aritmética ou é irresponsável”.Voltando ao controle da migração, um dispositivo, a se aperfeiçoar, seria tabular-se para todos os municípios brasileiros um índice que, ponderadamente, representaria a existência de áreas de risco (de inundação e de escorregamento) e sua densidade populacional. Assim, a mudança para um município com uma pontuação ponderada menos favorável, somente seria permitida se o indivíduo comprovasse ter condições potenciais de não se fixar em áreas de risco. 

-Temos um sistema de alerta de precipitações pluviométricas que funciona bem, desde o nível federal como estadual até o municipal com seu excelente Centro de Gerenciamento de Emergências- CGE-, mas que precisa ter mais recursos. 

-Já tivemos planos de controle de inundações com ações corretivas (especialmente obras, ou seja “ações estruturais”, como costuma-se denominá-las, adotando-se a designação de “ações não estruturais” para o que não referir-se a estrutura do âmbito da engenharia) essencialmente de bom conteúdo. O que tem faltado tem sido a prevenção e a continuidade dos programas (especialmente pela relativa baixa destinação de recursos face às necessidades) e também alguma falta de otimização dos recursos aplicados. Há tecnologias captáveis em outros países que podem nos ser úteis, mas, o que é inadmissível é importar-se engenheiros e arquitetos para suprir uma falta momentânea desses profissionais em nosso país. Os técnicos do país precisam ser mais estimulados a desempenhar seu justo papel. 

– Conforme estimativa feita em 1998, seriam necessários uns 40 anos de ações estruturais bem implantadas para o município da nossa Capital tornar-se razoavelmente protegido de inundações. O que de forma alguma significaria não ocorrência de tais fenômenos, os quais podem ocorrer em todas as altitudes inferiores à do Everest. Inundações controlam-se, evitam-se, não se acabam, isto é, tecnicamente, pode-se reduzir estatisticamente sua intensidade e sua freqüência. Como de 1998 para cá os problemas cresceram (mesmo sem se computar o aquecimento global nesse período) mais que as ações corretivas, tais 40 anos podem ser, provavelmente, ainda válidos a partir de hoje, considerando-se que criatividade (que nossos técnicos tem), espírito público e vontade política não forem faltar. 

-Quanto a ações não estruturais, o controle do uso do solo tem sido pelo menos uma lástima. A frase mais precisa que ouvi é: “O controle de inundações está umbilicalmente ligado ao uso do solo”. Entretanto, é pertinente citar-se que o governo municipal tem-se esforçado para implantar parques lineares e o governo estadual está providenciando a implantação de extenso parque a montante da Barragem da Penha.Tomara que do reservatório respectivo seja retirado o atual volume assoreado de cerca de 5 000 000 m³ para que atinja sua capacidade nominal da ordem de 10 000 000 m³. 

-Ainda em relação a ações não estruturais, falta educação ambiental voltada, entre outros aspectos, para “não se jogar lixo e entulho em qualquer lugar, nem se deixar que outros o façam”, para “não despejar esgotos onde deveria passar apenas água pluvial” e “para a população aprender como proteger-se de doenças de veiculação hídrica e de leptospirose”. A falha é, essencialmente, do poder público que não educa suficientemente nossa população, apesar de algumas louváveis iniciativas nas escolas e em apelos pela televisão. Em 1998, no “Concurso de Urbanismo Prefeito Prestes Maia”, promovido pela Prefeitura do Município de São Paulo, foi concedida Menção Honrosa para um amplo plano municipal de educação ambiental, implantável em 10 anos, com um custo baixíssimo em relação aos resultados que seriam certamente atingidos. O Prefeito, que outorgou a honraria entusiasmou-se muito, mas, nada aconteceu.De outra parte,a coleta de lixo e entulho bem como o tratamento de esgotos precisam ser melhorados. 

-Quanto ao trecho paulistano da calha do Rio Tietê (o mais paulista dos rios), no início da década passada, o governo estadual ampliou-a da melhor forma possível, dispondo da exígua faixa (de 80m a montante da foz do Tamanduateí e de 90m a jusante) entre as marginais que se originou do “Plano de Avenidas” do excelente Prefeito Prestes Maia, o qual, infelizmente “bancou a mancada” de seu assessor em matéria de drenagem, desprezando deste modo o “Projecto de Retificação do Rio Tietê”de autoria do grande Engº Saturnino de Brito ( que prescrevia 180m livres entre marginais), aprovado 10 anos antes do citado Plano. A grande falha atual dessa calha é que, ela não está sendo mantida desassoreada e que não está sendo feito o esforço necessário para se implantar reservatórios de retenção de vazões e de sólidos na maioria de seus afluentes principais. A calha desassoreada, mais tais reservatórios (desassoreados) com a Represa da Penha (desassoreada) representam as condições mínimas para o desempenho razoável para um período de recorrência de 100 anos. È claro que é extremamente difícil, na área urbanizada hoje (desde as marginais até o respectivo divisor de águas) destinar-se áreas para tais dispositivos. Mas, faz-se esse esforço ou conformemo-nos com o transbordamento do Tietê (o que é pelo menos perigoso, mesmo com um sistema de alerta bem eficiente)! Ou, em caso extremo, faça-se o túnel que, coletando as águas em um ponto, talvez entre o Aricanduva e o Tamanduateí, as lançará a jusante da Barragem de Edgard de Souza, a um custo astronômico! 

-Em conclusão: precisa-se de um plano abrangente e otimizado (incluindo-se a participação das comunidades atuantes, técnicas e populares) e da sua implantação.

Autor: Engº Renato Mattos Zuccolo