Cientistas criam fígado artificial

Milhões de brasileiros convivem com doenças do fígado, como a hepatite C e a cirrose. Nesse complexo órgão, ocorre a maior parte das reações metabólicas do organismo e a purificação do sangue. A falência hepática significa quase uma sentença de morte. É muito difícil encontrar doadores compatíveis para um transplante bem-sucedido. Graças à engenharia de tecidos e à ousadia de um cientista turco, esses pacientes começam a vislumbrar uma esperança de cura. Korkut Uygun, do Centro de Engenharia Médica do Hospital Geral de Massachusetts, ajudou a criar em laboratório pelo menos 20 fígados que se mostraram funcionais. Cinco deles foram implantados em camundongos. 

Sequência de fígados que foram lavados para eliminar células danificadas e que depois foram reprovados por células boas

A ideia de produzir fígados artificiais foi inspirada pela fabricação de um coração pulsante sintético — a façanha da médica norte-americana Doris Taylor, da Universidade de Minnesota, foi publicada dois anos atrás pela revista científica Nature Medicine. “Não achávamos que fosse funcionar para o fígado. Ao contrário desse órgão, o coração tem uma matriz extracelular muito fina”, explica Korkut, em entrevista ao Correio, por e-mail. O que ele e seus colegas fizeram foi usar um detergente especial para lavar o fígado cujas células são inviáveis. O resultado da lavagem é uma carapuça (matriz) descelularizada, dotada de microarquitetura e de vasos sanguíneos. “Usamos esses vasos para repovoar a matriz com células hepáticas”, afirma Korkut. Em um estudo secundário, Korkut obteve um grande número de células de alta qualidade, a partir de fígados danificados. “Para nossa surpresa, depois da retirada das células, a matriz reteve o formato e o comportamento do fígado”, acrescenta.

O cientista de Massachusetts lembra que milhares de pacientes morrem a cada ano. Em alguns casos, nem mesmo o transplante é solução de cura. Isso porque o fígado ficou bastante danificado, após não ter sido abastecido com oxigênio e sangue por muito tempo. “A ideia é usar esses órgãos danificados apenas para criar um enxerto transplantado. Após a lavagem da matriz e o repovoamento com células, mantemos o fígado no laboratório, por alguns dias, para que elas possam se reconectar e restabelecer suas funções”, comenta o coautor do estudo divulgado também pela Nature Medicine.

O processo
A pesquisa teve duas fases. A primeira etapa foi manter os fígados recelularizados em biorreatores, o que permite uma avaliação sobre como eles realizam certas funções específicas. “Por exemplo, vemos como o órgão produz albumina, uma proteína necessária para manter a pressão osmótica no sangue. Também medimos a produção de enzimas responsáveis pela eliminação de toxinas do sangue”, relata Korkut. De acordo com ele, os resultados comprovaram que o fígado recelularizado preservou a maior parte das especializações do fígado natural, ainda que não tão perfeitamente. “Testamos mais de 20 fígados recelularizados. Cinco deles foram transplantados em camundongos. Para analisar se o novo órgão permaneceria intacto, nós o mantivemos por apenas oito horas. Tudo funcionou bem”, comemora.

O estudo pode abrir brecha para que, um dia, os médicos usem as células do paciente para fabricar um novo fígado, a partir do próprio órgão danificado. “Se formos bem-sucedidos, poderíamos usar essa técnica para tratar da falência hepática”, diz o turco, que vê na engenharia de tecidos uma excelente solução para um grande número de problemas da medicina. Ele reconhece, porém, que repetir o trabalho da natureza é um desafio “bastante complexo”. “Pesquisas intensas têm sido feitas há décadas, mas com poucos sucessos. Se formos realmente sortudos, poderemos fazer com que isso funcione em 10 anos”, garante. Ainda assim, Korkut prefere a cautela e faz uma recomendação à população em geral. “Eu não começaria a beber de forma contumaz, apostando que em 10 anos haverá um novo fígado à minha espera”, ironiza

Autor: Correio Braziliense