Trem-bala muda o destino das cidades

O Japão, que criou o primeiro trem-bala do mundo há 45 anos, conseguiu espalhar pelos trilhos do país o desenvolvimento econômico obtido em Tóquio no pós-guerra. Com 2176 quilômetros de linhas prontas e 589 quilômetros em construção, a meta do governo é conectar todo o país. Enquanto isso, no Brasil, terminou na sexta-feira a consulta pública da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) para a criação do primeiro Trem de Alta Velocidade (TAV) do país com uma audiência em Barra Mansa (RJ). No evento, a prefeitura de Volta Redonda (RJ), que pretende “roubar” da cidade vizinha uma estação prevista no edital, apresentou um projeto de desenvolvimento municipal.

A experiência japonesa explica muito bem o porquê da disputa entre as cidades por uma estação. Seja em Tóquio, de onde partiu o primeiro trem de alta velocidade, ou em cidades onde as estações são mais recentes, como Kyoto e Hiroshima, e até mesmo naquelas onde as linhas estão em construção, o trem-bala altera a dinâmica e a história do município. O impacto é principalmente forte nas cidades menores porque ele provoca um aumento na migração de pessoas e também porque cria empregos.

O ministro do Território, Infraestrutura e Transporte do Japão, Seiji Maehara, disse ao Valor que também no Japão houve muita disputa entre as cidades para abrigar as estações do trem-bala porque naquelas onde ele passa o desenvolvimento econômico é mais acelerado. A estratégia japonesa para criar um número maior de estações foi criar três tipos de trens, conta. Um deles é expresso entre grandes cidades. Outro trem para em mais estações e um terceiro para em todas elas, para atender a migração diária de trabalhadores que usam o meio de transporte para ir ao trabalho e voltar. O projeto da ANTT para o eixo Rio-São Paulo-Campinas tem previsão similar no edital.

A mudança nas cidades é visível. A histórica Kyoto, por exemplo, tem cerca de 1200 templos budistas e xintoísta e foi rasgada por um arranha-céu em 1997, depois que o trem-bala passou a incorporar a antiga estação de trem. O prédio é um imenso complexo comercial, que inclui hotel, shopping center, loja de departamentos, cinema e inúmeros restaurantes e estabelecimentos públicos. Um plebiscito foi feito na cidade para ouvir a população sobre a criação do edifício. O povo aprovou o projeto de desenvolvimento, desde que fosse mantida e preservada a parte mais histórica da cidade.

Uma característica unânime em todas as cidades por onde passa o trem-bala – ou shinkansen, como é conhecido – é um planejamento em níveis federal e municipal para que a cidade receba de forma controlada o impacto da estação. Em Shin-Yokohama, uma das primeiras estações criadas em 1964, a 30 quilômetros de Tóquio, o terreno por onde o trem-bala passava passou décadas subocupado. Desde 1985, quando a estação se conectou ao metrô e à linha convencional de trem, o número de passageiros saltou de cerca de 10 mil para chegar os 60 mil atuais. O número de edificações em Shin-Yokohama passou de cinco para mais de 100 depois da interconexão, incluindo a criação do estádio que abrigou uma das sedes da Copa do Mundo de 2002.

Sakudaria fica a caminho da cidade turística de Nagano, partindo de Tóquio pelo trem-bala. A região da estação era um grande arrozal até os anos 80. Desde o início das obras do trem e da criação da estação, em 1991, até 2004, o número de moradores nos arredores da estação cresceu 20% – no mesmo período, a população do Japão aumentou 3%.

Jöetsu é uma cidade litorânea do Japão onde neva muito em janeiro. Seus habitantes esperam receber as benesses desenvolvimentistas do shinkansen em breve. A economia de Jöetsu, que parece uma grande vila, tem base na agricultura, indústria eletrônica e no porto.

Do chão da cidade, vê-se os pilares onde correrão os trilhos, a cerca de 20 metros de altura. Ao longe, estão os túneis que cortam a região montanhosa do país. Antes da construção, foi feita a desapropriação do terreno onde o trem passará. No entanto, como no Brasil, os desapropriados e indenizados são apenas aqueles com terrenos exatamente onde a linha passa, deixando os vizinhos com o incômodo de ter um trem passando a mais de 250 quilômetros por hora perto da janela. Mas as linhas japonesas são protegidas com barreiras antirruído onde há moradores nas redondezas.

Em Jöetsu, o planejamento urbano para receber a nova estação já está em curso. Será feita uma nova rua, um estacionamento, uma área residencial e um parque, onde serão colocados os restos arqueológicos achados em outras obras de infraestrutura pelo país. Atenta ao impacto que a estação trará à cidade, a prefeitura resolveu também investir e adequar o traçado do trem local ao do shinkansen, para que eles compartilhem a mesma estação e seja facilitado o acesso dos moradores ao trem-bala.

Segundo Harutoshi Hayasaka, da área de assuntos internacionais da Agência de Construção, Tecnologia e Transporte Ferroviário do Japão (JRTT), apesar da disputa política, a escolha da cidade onde será instalada a estação do shinkansen é ponderada, primeiramente, pela distância mínima para as estações vizinhas, depois pela demanda. “Em primeiro lugar está a rota por onde ele passa; em segundo, o espaço entre as estações e, em terceiro, empecilhos ou estímulos políticos”, diz ele.

No Brasil, a escolha da localização das estações – afora as obrigatórias em Campinas, Viracopos, São Paulo, Guarulhos, Aparecida do Norte, Rio e Galeão – deverá ser feita pelo consórcio que for o vencedor do edital.

Aparecida do Norte (SP) ganhou o direito a uma estação por receber turistas em períodos de menor fluxo no trem. Jundiaí, entre Campinas e São Paulo, torce para ter uma parada. No Vale do Paraíba, em São Paulo e Rio, a disputa é grande, como mostra o embate entre as vizinhas Barra Mansa, Volta Redonda e Resende na seção fluminense, e São José dos Campos, Jacareí e Taubaté, na parte paulista. Volta Redonda e Resende criaram projetos complexos de desenvolvimento para receber a estação e convencer os empresários. Jacareí, no interior paulista, pede que ao menos os centros de controle e tecnológico fiquem no seu território.

Segundo Hélio Mauro França, superintendente-executivo da ANTT, foram mais de 500 as contribuições ao edital do TAV na audiência pública encerrada na sexta-feira. Nas sete sessões públicas, houve 1355 pessoas. 

Exigências de edital ainda preocupam consórcio

O consórcio formado por Mitsui, Toshiba, Hitachi e Mitsubishi ainda vê muitos riscos no edital do trem de alta velocidade (TAV), mas diz ter experiência e motivos tecnológicos para acreditar que o modelo japonês seja o melhor para o Brasil. Eles desenvolveram um sistema de tração que reduz a possibilidade de acidentes e aumentaria a velocidade do trem-bala nas subidas e descidas no trecho carioca do trem-bala. “A Serra das Araras implica alta dificuldade ao projeto e a eficiência da tração terá impacto direto no seu custo”, diz Kazuhisa Ota, chefe da equipe que projeta o TAV na Mitsui.

Embora o consórcio ainda não tenha fechado acordo com uma das grandes empreiteiras brasileiras, que serão responsáveis pela construção civil – grande parte dos R$ 34,6 bilhões de orçamento do TAV -, o shinkansen é visto como referência tecnológica indiscutível pelo governo brasileiro. Mas, para o consórcio, as exigências do edital brasileiro são pouco restritivas e mais adequadas aos padrões europeus.

Segundo os representantes do consórcio, os japoneses são capazes de fazer túneis 28% menores do que os europeus, o que reduziria custos – o edital prevê cerca de 90 quilômetros de túneis. A velocidade do shinkansen poderia chegar a 300 km/h, dependendo das leis nacionais. No Japão, a velocidade é limitada por normas que preveem um teto para o volume de emissão sonora do trem-bala. Mesmo levando em conta a lei japonesa, o consórcio considera razoável o limite de tempo de 1h33 estabelecido para a viagem entre São Paulo e Rio.

O peso menor do modelo japonês é outra vantagem, na avaliação do consórcio, porque implica menor gasto de energia e de manutenção periódica dos trilhos. Outro ponto forte do trem japonês é a pontualidade. O atraso dos trens é de menos de um minuto, na média anual. Em 45 anos de operação do trem-bala no Japão, não foi registrado nenhum acidente com vítimas.

No consórcio, a Mitsubishi ficaria com a gestão do TAV, a Toshiba com a alimentação elétrica do sistema, a Hitachi construiria o material rodante e a Mitsui faria o papel comercial e financeiro. A tarefa mais difícil do grupo é levantar apoio financeiro, porque essa é uma variável fundamental para escolha do vencedor. O ministro do Território, Infraestrutura e Transporte do Japão, Seiji Maehara, afirmou que o governo japonês fará grande esforço para que as suas empresas ganhem a concorrência do TAV no Brasil

Autor: Valor Econômico