A República da Panákia

Há pouco esteve entre nós um dos mais destacados membros da oligarquia panaka, o Dr. Yakobis, mentor intelectual – ou eminência parda, segundo seus detratores – da original experiên¬cia modernizadora vivida por seu país. O Dr. Yakobis, certamente o mais ilustre dos panakas, concedeu-nos uma entrevista histórica, não só pela inédita simplicidade com a qual a Panákia está resolvendo seus problemas, como principalmente pela semelhança existente entre os nossos e os problemas daquela importante nação. É com a esperança de nossos líderes se inspirarem nas sábias palavras de nosso entrevistado que transcrevemos, ipsis litteris, a entrevista concedida.¬

Entrevistador: – Sinto-me gratificado por estar na presença do já chamado ‘O Grande Experimentador’, em face das bem-sucedidas aplicações de sua filosofia político-social, causa do despertar panakiano. Gostaria que o senhor resumisse para nossos leitores suas principais ideias.
Dr. Yakobis: – Fico feliz em poder descrever para os habitantes desse carnavalesco país os resultados de meus trabalhos. Evidentemente, em uma única entrevista será possível fazer apenas uma breve introdução à teoria panakiana. Os interessados encontrarão detalhes em meus livros ‘O Princípio da Complicação Mínima e suas Complicações’ e ‘A Lei da Unicidade’.
‘O Princípio da Complicação Mínima’ (conhecido por ‘O Princípio’) estabelece que, para cada questão, a melhor solução é aquela que consome menos energia para ser obtida; é aquela que exige que pensemos menos (melhor, até, que nem pensemos). As soluções ditas racionais são enganosas, quase sempre agravando os problemas. Nossos sábios desenvolveram uma teoria política baseada no Princípio e, gradativamente, os problemas da Panákia foram sendo resolvidos. Variações do Princípio já foram apresentadas no passado pelos físicos, mas sua atual importância transcende em muito àquelas aplicações, as quais se tornaram meros casos particulares sem interesse algum.
A Lei da Unicidade é consequência do Princípio e estabelece: ‘O que for passível de ser único, deve sê-lo’. Afora algumas exceções, que só confirmam a regra, o único é mais confiável, mais eficiente. O Princípio e a Lei, acrescidos de outros dois resultados, o Lema Selassiê e o Dogma da Separação, formam a base da monumental filosofia panakiana, vetor de retumbantes sucessos. Se ousamos sugerir a aplicação das nossas soluções aos problemas de seu país, é porque notamos uma admirável similaridade entre as nossas duas histórias.

Entrevistador: – O senhor poderia nos falar das aplicações do Princípio da Complicação Mínima?
Dr. Yakobis: – É claro. Nada entusiasma mais um tecnocrata-político do que descrever a comprovação prática de suas ideias.¬ Antes, porém, lembro que outros países têm utilizado esporadicamente o Princípio – fomos nós, contudo, que sistematizamos seu uso. Por exemplo, o problema indígena, em vários países, tem sido resolvido do modo mais simples possível, eliminando-se os causadores dos problemas, os indígenas. Esta solução, também conhecida por ‘Opção Zero’ (ela diz: ‘Se algo te incomoda, suprima-o’), foi ensaiada pelos nazistas contra os judeus, e os israelenses a têm habitualmente utilizado contra os palestinos. Outra aplicação notável ocorreu na construção da capital de seu país. Como obter uma cidade com o mínimo de pobreza? Muito simples: a pobreza foi exilada para as cidades-satélites, e a capital foi preservada.
Quanto a nós, aplicamos o Princípio a um grande número de casos. Eliminamos a luta de classes: já que, existindo classes, não conseguíamos evitar o confronto entre elas, acabamos com as classes. Na Panákia só existe a classe pobre – a propósito, seu país há tempos vem perseguindo o mesmo objetivo, e com perceptível sucesso. O alto índice de desemprego foi resolvido facilmente: decretamos o desemprego como crime, sujeito a rito sumário. Os desempregados foram condenados a trabalhos forçados, e no dia seguinte o índice caiu a zero. O problema da inflação também foi enfrentado: nossa casa da moeda emite livremente uma moeda auxiliar chamada dólar; todos recebem e pagam com ela. O valor do dólar é constantemente reajustado, mas os preços e ordenados, em dólar, permanecem quase inalterados. Já as questões políticas, com seus intermináveis debates e pouco proveitosas discussões, necessitaram decisões de pulso, que sugiro a todos os governantes responsáveis. Proibimos a oposição de se opor! Finalmente, percebemos sua insistência em se opor, uma atitude bastante desagradável e de difícil aceitação. Bem que tentamos o entendimento nacional, decretando que as decisões deveriam ser tomadas por unanimidade, como demonstração de nossa união e da pujança de nossa democracia. Quando notamos que a maioria total raramente era alcançada, devido à intransigência de alguns opositores, não nos restou outra alternativa…
Mais alguns exemplos: nosso imposto de renda é simples, ninguém está isento e a taxação é de cem por cento para todos, pois, já que não pudemos proporcionar uma melhor renda, resolvemos distribuir equitativamente nossa falta de renda. Trocamos o nome do salário mínimo para ‘salário máximo’. Todos que recebiam o salário mínimo – e por isso estavam descontentes – passaram a ganhar o salário máximo – e ficaram felizes. O resultado foi tão bom que estamos pensando em trocar o nome da classe pobre para ‘classe rica’. Ia me esquecendo do trânsito: na Panákia, quando uma rua apresenta congestionamentos, nós a proibimos para o tráfego, e os congestionamentos terminam. Também, para evitar injustiças, temos cogitado suprimir a Justiça (apesar de caríssima, ela funciona tão mal que a maioria não vai nem notar a supressão). E, na mesma linha ideológica, para diminuir os sofrimentos da pobreza e as incertezas da velhice, nossa autoridade maior elaborou um eficiente plano de vacinação para eliminar os descapitalizados e os aposentados.
Para evitar os percalços que ocorrem na indústria, nas ciências e nas artes, resolvemos de vez. Não temos mais manifestações culturais, nem científicas, nem parque industrial. Hoje orgulho-me de dizer que não precisamos produzir nada, pois a Panákia importa tudo: produtos científicos, artísticos e indus¬triais. Nossa meta agora é extinguir a educação, pois ela se tornou inútil e antieconômica.
Minimizamos nossa produção agrícola ensinando nosso povo a não comer, e ninguém tem reclamado. Dizem que já estão sem forças para tanto, mas eu discordo. Isto é um bom indício de que já se acostumaram.
Quanto à corrupção, que, na maioria dos países, é malvista (quantos traumas desnecessários!), foi regulamentada e serve como estímulo, dentro de nossa filosofia neoliberal, para a vitalidade da economia e a felicidade dos dirigentes. Hoje, apropria-se mais quem tem maior capacidade, e ponto final.

Entrevistador: – Estou surpreso com a sabedoria panakiana. O senhor tem alguma aplicação da Lei da Unicidade?
Dr. Yakobis: – Pois não. Na Panákia temos, por decreto: uma só classe, a pobre; um só partido, o do governo; um só ministro, o da Economia (para que outros?); uma só estação de rádio, um só canal de TV (por isso nossos aparelhos de rádio e TV são mais simples e baratos – e depois, se uma só emissora de TV já apresenta idiotices suficientes, para que reproduzi-las em várias estações?), um só jornal, uma só língua (para que aprender o panakês e o inglês? – optamos pelo inglês somente); uma só moeda efetiva, o dólar (solução esta parcialmente copiada pelo seu vizinho, a Argentina, que não teve porém a coragem de completar a solução, emitindo livremente esta moeda).

Entrevistador: – E o Lema Selassiê?
Dr. Yakobis: – O ex-imperador Selassiê, da Abissínia, dizia que a felicidade é a diferença entre o realizado e a expectativa; por isso ele prometia pouco, para poder fazer um tanto mais. Nós modificamos ligeiramente esta assertiva, estabelecendo que ‘São as expectativas não cumpridas que acarretam a infelicidade’. Por isso, nosso governo não promete nada e não faz nada e, assim, ninguém tem do que reclamar.

Entrevistador: – Brilhante! E quanto ao Dogma da Separação?¬
Dr. Yacobis: – Este é o mais fundamental. Ele afirma: ‘Os interesses do Estado e os do povo são, não só distintos, como conflitantes’. Nossas bem-intencionadas tentativas para resolver os problemas da Panákia foram frustradas todas as vezes em que tentamos satisfazer também aos interesses dos panakas. O Dogma veio resolver o impasse, pois, ao percebermos que os panakas são muito menos importantes do que a Panákia, dissociamos completamente o povo do Estado. Agora tratamos dos interesses da Panákia, e os panakas que se arrumem. Deus meu, como tudo seria mais simples para os governos se o povo não existisse! ¬Aliás, como não concordamos com a ideia da alternância no poder, estamos pensando em trocar o povo de quatro em quatro anos. Já não disseram: ‘Se o povo não está contente com o governo, demita-se o povo e eleja-se outro’?¬
Na Panákia estamos plenamente convictos da nossa legitimidade, e é fácil entender por quê. Não é legítimo governos de salvação nacional assumirem o poder quando o país está em crise? Pois o que nossa oligarquia tem feito é apenas manter a nação em crise permanente para, assim, continuar legitimamente no poder. Aos nossos poucos detratores, que sempre os há, temos a responder que lutamos por princípios. Temos uma posição ética perante a sociedade – embora nossa ética, por ser um tanto diferente, às vezes seja incompreendida por indivíduos de má vontade. O princípio fundamental da oligarquia panaka é manter-se no poder a qualquer custo. Ele estabelece: ‘Se você conquistou o poder, jamais o perca; use-o para mantê-lo’ ou ‘Todo poder emana do poder e em seu nome será exercido’. Ética mais clara, impossível.
Aposentamos Maquiavel, mero aprendiz, e adotamos Alice no País das Maravilhas como nosso ideário político: temos bebido muito da sabedoria de Humpty Dumpty – ele nos ensinou que as palavras devem dizer apenas aquilo que queremos que elas digam, e não o que elas teimam em querer dizer. Para nós, os meios justificam os fins; quando se dispõe dos meios, sempre poderemos encontrar algum fim adequado aos meios disponíveis.¬

Entrevistador: – Dr. Yakobis, nossos leitores ficarão encantados com tanto bom senso e pragmatismo. Só nos resta agradecer, congratulando-nos com o povo da Panákia por possuir dirigentes tão lúcidos e capazes de conduzi-la ao seu merecido destino.¬
Dr. Yakobis: – Agradeço igualmente as atenções a mim dispensadas e espero que nossas experiências sirvam como exemplo para os experimentadores desse promissor país. Lembrem- -se sempre das palavras finais do hino-canção de meu país: ‘Povo bom não tem memória; sabe mais quem tem poder, quem pode faz a história, não deixa ninguém mais fazer.’
(Nota: Este texto, redigido no final do período autoritário, ilustra o fato de o Brasil, desde tempos imemoriais, nunca ter experimentado variações relevantes em seu comando: as oligarquias dominantes sempre encontraram um modo de continuar dominando… Com a utilização da urna eletrônica, então, qualquer veleidade de mudanças fica mais problemática ainda.)

ADENDO: CONSTITUIÇÃO DA PANÁKIA

CLÁUSULAS PÉTREAS
ARTIGO I – O governo manda; o povo obedece.
ARTIGO II – Se estiver de acordo com o Artigo I, vá para o Artigo III; se não, volte a ler o Artigo I.
ARTIGO III – Daqui a uma hora, releia a Constituição.

ATOS INSTITUCIONAIS

AI 1 – A partir deste instante, a oposição fica proibida de se opor.
AI 2 – A partir deste instante, o salário mínimo passa a ser denominado ‘salário máximo’.
AI 3 – A partir deste instante, o desemprego passa a ser crime sujeito a rito sumário, punido com a pena de trabalhos forçados.
AI 4 – A partir deste instante, juntem-se todas as classes em uma só, denominada ‘classe pobre’.
AI 5 – A partir deste instante, todos os descapitalizados, aposentados, opositores e outros indesejados são obrigados a se vacinarem mensalmente com a dose única denominada ‘Choque anafilático’.
Parágrafo único – Os imigrantes tomarão uma dose dupla ao ingressar no país; os sobreviventes serão agraciados com a cidadania panakiana.
AI 6 – A partir deste instante, a tabela do imposto de renda será a seguinte: o limite de isenção será zero e a alíquota única será de 100%.
AI 7 – A partir deste instante, cada cargo deverá ser preenchido com a pessoa mais apta em burlar as leis e regras estabelecidas, a vigilância das quais é atribuição do cargo em pauta.
AI 8 – A partir deste instante, fica estabelecido que todo homem tem o direito de ser impunemente incoerente.
AI 9 – A partir deste instante, cada mulher poderá, e deverá, ter quatro maridos.
AI 10 – A partir deste instante, o dia passa a ter 30 horas, cada uma com 48 minutos de duração.
AI 11 – A partir deste instante, ficam eliminados os cheques e os bancos. Os banqueiros, desempregados, serão condenados a trabalhos forçados.
AI 12 – A partir deste instante, todos são obrigados a tomar uma pílula ‘Fome Nula’ três vezes ao dia, nos horários das refeições.
Parágrafo único – Em ‘todos’ não estão incluídos os dirigentes da nação.
AI 13 – A partir deste instante, todos os pessimistas estão instantaneamente convertidos em otimistas.
Parágrafo único – Suprima-se a palavra ‘pessimista’ do vocabulário panakiano.
AI 14 – A versão oficial do governo constitui a História; sempre que a versão oficial mudar, a História será reescrita.
Parágrafo único – Todos os livros ou textos pessimistas, ou desagradáveis ao governo, serão imediatamente substituídos por livros e textos otimistas e agradáveis.

Autor: Walter Del Pichia é associado ao Instituto de Engenharia