E se São Paulo tivesse vencido em 1932?

Créditos da foto:  Carlos Alkmin/Harvey Meston/Superinteressante

m 9 de julho de 1932, há 90 anos, o Brasil entrou em guerra civil. Forças de São Paulo enfrentaram as do resto do país e, em menos de três meses, 890 militares morreram. Esse é o número oficial, mas historiadores estimam que o total tenha sido maior, 2.200. Seja qual for o dado real, é bem mais do que o número de soldados brasileiros mortos na 2a Guerra Mundial (467). O confronto ficou conhecido como Revolução Constitucionalista de 1932.

Esse nome meio desengonçado revela o que os paulistas queriam: uma constituição para encerrar o chamado “Governo Provisório” de Getúlio Vargas. Getúlio havia concorrido nas eleições de 1930, dois anos antes, e perdido para o paulista Júlio Prestes. Mas a derrota não foi aceita por seus apoiadores, que mobilizaram forças de Minas, Paraíba e Rio Grande do Sul para o Rio, impedindo a posse de Prestes e conduzindo Vargas à cadeira de “presidente provisório” – na prática, um poder ditatorial.

A Revolução de 1930 fez uma ditadura, mas prometia democracia – com eleições livres e universais. A data já estava marcada: 3 de maio de 1933, com eleições para a Assembleia Nacional Constituinte. Os paulistas, por muitas razões, não acreditaram nisso e foram à guerra em 1932. Perderam.  As eleições aconteceram na data prometida, a nova constituição entrou em vigor em 1934. E Vargas foi confirmado presidente, indiretamente, pela própria Assembleia Constituinte.

Mas e se os paulistas tivessem vencido o confronto armado? Ele não representaria a independência ou separação de São Paulo do resto do Brasil. Os paulistas não queriam isso. Eles se diziam o “povo bandeirante” (referência aos Bandeirantes, aqueles que “desbravaram” novos territórios para a Coroa Portuguesa, conquistando basicamente todo o interior do Brasil), fundador do país. E sua missão autodeclarada era salvá-lo da, na grafia da época, “dictadura”.

O plano era ir até o Palácio do Catete, no Rio, para tirar Vargas da cadeira presidencial. Quando São Paulo entrou em guerra com o governo federal, acreditava poder contar com o apoio do Rio Grande do Sul, de Minas Gerais e do Mato Grosso (que incluía o Mato Grosso do Sul). Não foi bem o que aconteceu. No Rio Grande do Sul, parte da tropa até se rebelou, mas acabou esmagada pelas forças governistas. Mato Grosso se alinhou aos paulistas, mas não enviou tropas. Minas virou a casaca na última hora.

Mas, supondo que os mineiros lutassem ao lado dos paulistas, haveria um cenário fulminante: tropas paulistas e mineiras tomariam o Rio, talvez com pouca ou sem resistência. Vargas seria preso. Mas o próximo passo não seria restaurar o status quo pré-Getúlio, a República Velha. O arranjo de forças já era bem diferente. Os líderes mais fortes em 1932, na verdade, haviam sido apoiadores de primeira hora de Vargas.

Haveria uma nova Constituição e uma reforma eleitoral, com voto secreto universal (da mesma forma que o regime getulista acabou fazendo). O novo regime paulista seria uma democracia. Mas com algumas características diferentes, impostas pelos vitoriosos.

Uma delas seria a bandeira nacional. Ela seria a atual bandeira paulista – que foi usada pelas tropas de São Paulo em 1932, mas na verdade representava o país. Foi concebida em 1888, como proposta de nova bandeira brasileira, pelo republicano paulista Júlio de Medeiros. Republicanos de outros estados, como o Rio Grande do Sul, também propuseram a combinação de vermelho, branco e preto – que, na visão deles, representam as “três raças” do Brasil.

Outra mudança seria a capital: o Rio de Janeiro, no litoral, era considerado vulnerável (sua conquista por rebeldes, duas vezes em dois anos, era prova disso). A constituição da República Velha, de 1891, previa a fundação de uma nova capital no interior de Goiás. E uma capital no centro do país, em território conquistado por bandeirantes, teria tudo a ver com os ideais dos vitoriosos. Brasília, assim, seria fundada mais de duas décadas antes, já nos anos 1930.

A cultura seria diferente. Na Era Vargas, com sua tendência de centralização, o Rio firmou-se como o centro do país e algumas coisas que eram fortes por lá, como o carnaval com escolas de samba, se tornaram símbolos nacionais.

Mas, com a ascendência de São Paulo, a migração da capital e toda essa conversa sobre o interior bandeirante, no lugar do malandro carioca, o estereótipo nacional seria o caipira. O samba existiria – era um fenômeno também em São Paulo –, mas a música caipira poderia ser enaltecida. Quando a Disney inventasse um personagem brasileiro para ajudar na chamada Política de Boa Vizinhança dos EUA, não seria o Zé Carioca, mas o Jeca Paulista.

Até a língua podia acabar modificada. O general gaúcho Bertoldo Klinger não conseguiu mobilizar tropas, mas trouxe a si mesmo para liderar as forças paulistas em 1932. O militar tinha ideias para além do campo de batalha: em 1940, lançou seu livro Ortografia Simplificada Brasileira.

Assinando como Jeneral Klinger, ele propunha uma solução radical: que cada letra só representasse um único fonema e tudo fosse escrito exatamente como é falado. Um trecho: “Faz-se esepsão para os cazos em ce tal preficso é segido por vogal lînguo dental (…). Cuando o componente seginte comésa por vogal, desaparése acele” (na gramática do general, o “c” tem som de “k”).

Mas a maior das mudanças seria o federalismo. A motivação decisiva de 1932, que fez aliados paulistas de Getúlio mudarem de lado, foi que Vargas nomeou interventores (governadores não eleitos) de outros estados para mandar em São Paulo. A revolta tinha muito de bairrismo ferido. Se os paulistas tivessem vencido, a configuração do país talvez fosse mais parecida à dos EUA: comparativamente poucas leis e impostos federais, e autonomia para estados decidirem questões como aborto ou liberação de drogas.

Também haveria forças armadas regionais. Durante a República Velha, as polícias militarizadas dos estados, chamadas de Forças Públicas, eram basicamente exércitos. Foi a Força Pública de São Paulo, que tinha até tanques e aviões, que lutou contra o resto do país em 1932. Sem Vargas, as forças estaduais continuariam existindo.

Quem acabaria na presidência provavelmente não seria nenhum paulista, mas um aliado gaúcho, Borges de Medeiros. Depois de ser preso (por apoiar os paulistas) e anistiado, ele concorreu com Vargas em 1932 e perdeu. Sem o opositor no páreo, e vencedor da guerra civil, Medeiros se tornaria o primeiro presidente democrático. Só que ele tinha ainda menos credenciais democráticas que Getúlio: havia sido presidente do Rio Grande do Sul por tanto tempo (25 anos, 15 deles seguidos) que os gaúchos quase entraram em guerra para acabar com a reeleição.

Medeiros se veria diante do mesmo desafio que atingiu Vargas: a Intentona Comunista de 1935, liderada pelo militar rebelde Luis Carlos Prestes. Só que, com os estados mais armados, haveria mais vitórias regionais contra o poder federal – e o país poderia acabar mergulhando numa segunda guerra civil.

Fonte: Superinteressante