Justiça Eleitoral criada para a ‘verdade das urnas’ faz 90 anos

Em 1932, decreto do então presidente Getúlio Vargas criou órgão na reforma eleitoral feita após a Revolução de 1930

Funcionários da recém-criada Justiça Eleitoral trabalham no alistamento de eleitores para o pleito de 1933, que elegeria os deputados constituintes - Arquivo Nacional

Publicado em fevereiro de 1932, o decreto de Getúlio Vargas que criou a Justiça Eleitoral estava inserido em uma campanha pela moralização das eleições e fim das fraudes generalizadas, bandeira empunhada pela Revolução de 1930, que depôs o presidente anterior, Washington Luís.

O estabelecimento de um órgão judicial independente e especializado para, entre outras tarefas, administrar as eleições, fazer a apuração de votos e reconhecimentos dos eleitos fazia parte de um pacote amplo de reformas instituídas pelo primeiro Código Eleitoral brasileiro, que também trazia o voto secreto e o voto feminino.

Apesar da importância atribuída à Justiça Eleitoral, pesquisadores que têm se debruçado sobre os primórdios dos tribunais eleitorais propõem uma leitura menos romantizada dos interesses do governo provisório de Vargas ao criar o órgão especializado e também dos efeitos da inovação neste período.

A estrutura delineada era bastante próxima à atual, com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), à época instalado no Rio de Janeiro, onde estava a capital federal, bem como com os Tribunais Regionais (TREs) nos estados e os juízes eleitorais.

“Ter instituições que garantam a verdade eleitoral passou a ser uma preocupação bem importante das democracias eleitorais ao longo do século 20”, afirma o cientista político e professor da UFABC (Universidade Federal do ABC) Vitor Emanuel Marchetti, que estuda modelos de governança eleitoral.

Verdade eleitoral, explica ele, é a garantia de que o resultado eleitoral reflita a vontade do eleitorado, algo que era inexistente na dinâmica da Primeira República (1889-1930).

Getúlio Vargas (ao centro), então chefe do governo provisório, e lideranças da Revolução de 1930; à direita de Vargas, o político Assis Brasil, um dos autores do Código Eleitoral de 1932 CPDOC/FGV
A sufragista Almerinda Farias Gama vota na eleição de representantes classistas para a Assembléia Nacional Constituinte de 1934 CPDOC/FGV

Uma declaração do político e advogado gaúcho Joaquim Francisco de Assis Brasil, em manifesto anos antes de Vargas assumir o poder, dá o tom das críticas que eram feitas pela oposição às eleições.

“Ninguém tem certeza de ser alistado eleitor; ninguém tem certeza de votar, se porventura for alistado; ninguém tem certeza de que lhe contem o voto, se porventura votou; ninguém tem certeza de que esse voto, mesmo depois de contado, seja respeitado (…)”, afirmou.

Assis Brasil foi um dos integrantes da comissão nomeada por Vargas, em 1931, responsável pela reforma eleitoral. À época, a proposta da Justiça Eleitoral teve inspiração no modelo uruguaio.

“Degola” e “eleição a bico de pena” são algumas das práticas que remetem ao histórico de fraudes do período.

Na primeira, candidatos de oposição que tivessem sido eleitos eram impedidos de tomar posse. Isso porque o reconhecimento e diplomação dos eleitos ficava a cargo de uma comissão do Congresso, este de maioria governista.

Já a segunda expressão se refere aos resultados lavrados em atas, não conforme o voto dos eleitores, mas de acordo com a pena dos mesários, definidos de acordo com o poder local.

A justificativa por trás da criação de um órgão separado do Legislativo e do Executivo era blindar o processo eleitoral da interferência das forças políticas, enquanto magistrados seriam vistos como figuras imparciais.

De acordo com a professora e pesquisadora do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da FGV Jaqueline Zulini, contudo, é um equívoco considerar que o estabelecimento da Justiça Eleitoral tenha tido um impacto imediato sobre as disputas políticas durante a Era Vargas.

“Dados preliminares mostram que os tribunais eleitorais aparentemente não atuaram de forma tão independente quanto se supõe”, aponta ela.

Ao analisar denúncias das eleições da época, Zulini aponta que são identificadas diversas alegações de fraude apresentadas por candidatos e partidos afirmando que juízes eleitorais atuaram de forma partidária, beneficiando candidatos governistas.

“Há evidências de que o próprio TSE foi atravessado pelo governo provisório que, no exercício do seu poder discricionário, tomou decisões fora da sua alçada, desrespeitando a zona de prerrogativas da Justiça Eleitoral.”

Entre os episódios elencados por Zulini estão decretos definindo o prazo para demarcação das zonas eleitorais e alteração das regras para alistamento para facilitar o alistamento de sindicalizados reconhecidos pelo governo.

Desde a deposição do governo anterior, em 1930, o Legislativo estava dissolvido e o governo provisório atuava por meio do poder discricionário.

Além da interferência por meio de normas, Zulini ressalta também que, apesar de o Código Eleitoral ter previsto a realização de concurso público, para garantir a independência dos servidores da Justiça Eleitoral, na prática, funcionários públicos do Judiciário disponíveis acabaram sendo emprestados.

Tal conduta gerou críticas nos jornais à época, que insinuavam influência dos interventores estaduais —nomeados por Vargas— na definição das indicações.

A avaliação da pesquisadora é que Vargas deu seguimento às reformas eleitorais como um modo de legitimar seu governo, especialmente por ter defendido tais bandeiras antes de tomar o poder. Contudo, ao efetivar as mudanças, buscou condicioná-las aos interesses do governo provisório.

“É importante que novas pesquisas resgatem os termos da instalação e funcionamento dos tribunais eleitorais em seus primeiros anos no Brasil sem desconsiderar os desafios da época.”

Após seu nascimento, a Justiça Eleitoral teve inicialmente uma breve existência. Extinta em 1937, ela só voltaria em 1945.

Isso porque, ao longo da ditadura do Estado Novo, implantada por Vargas, permaneceram suspensas as eleições, os partidos, a Justiça Eleitoral e a Constituição recém-aprovada pela Assembleia foi substituída por uma nova.

A cientista política e professora da USP Maria Tereza Sadek considera que a criação da Justiça Eleitoral foi um ponto de inflexão na história brasileira.

“Com frequência a gente tem uma visão sobre a nossa história muito mais centrada nos partidos políticos, no Executivo, e não se dá a devida importância à Justiça Eleitoral”, afirmou.

Autora do livro “A Justiça Eleitoral e a Consolidação da Democracia no Brasil”, Sadek avalia que o órgão teve papel decisivo na transição democrática e no fim da ditadura militar.

“Teve papel absolutamente decisivo para o fim do regime militar, do regime autoritário, do regime que cerceava liberdades. Foi graças à Justiça eleitoral que Tancredo Neves foi eleito”, diz.

“Do meu ponto de vista foi uma virada importantíssima na história política no Brasil.”

“Sem a Justiça Eleitoral, a questão da fidelidade partidária teria sido imposta e, no Colégio Eleitoral, teria sido eleito o candidato do regime.”

A vitória de Tancredo Neves (PMDB) para a Presidência, em janeiro de 1985, e que marcou o fim da ditadura, envolveu uma consulta ao TSE.

À época, Maluf, então candidato pelo PDS —partido herdeiro da Arena— tentou evitar, com base na regra da fidelidade partidária, que os dissidentes de seu partido pudessem votar em Tancredo.

Por unanimidade, o TSE decidiu que, como eleitores no Colégio eleitoral, os deputados tinham liberdade de manifestação, não se aplicando o princípio de fidelidade partidária.

Na votação, o PDS rachou ao meio: 174 pedessistas votaram em Maluf, e 166, em Tancredo, garantindo a vitória do pemedebista.

Sadek destaca que, mesmo durante o período da ditadura militar (1964-1985), a Justiça Eleitoral permaneceu atuando e garantindo a posse dos congressistas opositores.