Por Reginaldo A. de Paiva – Antropofagia Ecológica

Por REGINALDO A. DE PAIVA*

Cai a tarde e eu fico a pensar em como esta frase soube ser poética, um dia. As tardes caiam, sim, e não apenas eram tristonhas e serenas, como também aconteciam em macio e suave langor (langor, esta é uma palavra morta).

Se as tardes ainda hoje podem ser tristonhas, ninguém pensaria em dizer serena da noite que chega no congestionamento das ruas, na irritante sucessão de buzinas, luzes, freadas e de pessoas circulando (assustadas), por entre carros e sinais.

Uma hora de lenta agonia, completam os versos da velha canção, sem que se possa saber como uma tarde, que morre em lenta agonia, possa ser serena. No entanto, eram em noites assim, serenas, que um tênue vapor terminava por se condensar em pequenas gotas sobre as folhas, mansamente, (serena)mente: sereno (serena e sereno, estas são palavras mortas).

Cantava-se, também, o orvalho, que vem caindo. Mas é que se vivia em um tempo de chapéus molhados, em um tempo de estrelas, sumindo, uma a uma, lá no céu. Já não mais existe orvalho, sequer sereno. A antiga humidade dos capins, molhando o couro matinal dos sapatos. Toda a grama que nos resta foi petrificada em monumentos ao verde e, como orvalho, restou apenas aquela desagradável e fria humidade que ensopa os jornais, desfolhados pelos mendigos que se desaquecem sob os viadutos. A minha cama é uma folha de jornal (lá, também é palavra morta).

A visibilidade mal ultrapassa o topo dos edifícios. Há que se ser mais modesto e só se falar em alís. Qualquer coisa que queira ser mais visível, além de um ali, deverá ser, pelo menos, tão grande quanto o gigantesco relógio luminoso, instalado, ao longe, sobre o prédio do Conjunto Nacional na Avenida Paulista e que me informa, em grandes números, que as horas já são mais que 20:30 e que a temperatura beira os 18º (cruzes, que esta noite vai ser fria).

O dia também morreu, acompanhando todas as canções nostálgicas e românticas, que falavam desta cidade e de sua garoa; todas sepultadas na melodia de uma canção que ninguém mais canta. Talvez o melhor seja encerrar o dia, como se ainda possuíssemos uma qualquer individualidade urbana, como se fôssemos pessoas que voltam para casa entre acenos e cumprimentos. E, então, saímos em pequenos grupos de cada escritório, amontoados entre perfumes e odores nos elevadores, em grupos maiores nos saguões dos edifícios, em compactas multidões nas ruas.

Os acenos e eventuais cumprimentos são outros tantos gestos anônimos do grande gesto de retorno ao lar. Provisoriamente libertos e definitivamente perdidos, os que vão e os que vêm, estabelecem rígidos sentidos de circulação, contornando desgastadas anciãs que vendem bonecas de pano, marginais precoces que oferecem correntinhas de ouro e falsos executivos que passeiam suas pastas negras. Cinemas e teatros piscam acenos, iluminam promessas de renovação dos gestos universais de amor, de rebelião ou de risos.
Depois, vem um chope, batatas fritas e filé-de-palito (mastigar, isso não morreu, chega-se, até, a reinventar a arte de comer um simples filé).

A rua e suas luzes, a noite e seus moradores.

Gira-se, então, a chave – duas ou três vezes – as travas estalam, as linguetas correm e de pronto, a enganosa segurança do lar.

De olhos no teto, as pálpebras piscando em pistas de areia, o sono chegando, vamos acordando antigos planos de uma fuga para praias distantes onde possamos viver apenas do mar e do sol.

E então se sonha com impossíveis savanas africanas, o sol trincando o chão em secas estivais e seus leões (jubas irritadas e garras brancas).

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REGINALDO A. DE PAIVA*

Diretor secretário da Diretoria Executiva (2014/2015); representante do Instituto de Engenharia na Comissão Pré-Centro e na Operação Urbana Águas Espraiadas e na Comissão Licitatória de Concessões Rodoviárias (Secretaria de Estado dos Transportes); membro do Conselho Editorial da Revista Engenharia.

*Os artigos publicados com assinatura, não traduzem necessariamente a opinião do Instituto de Engenharia. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.