Por Reginaldo Assis de Paiva – Ronda e fantasmas urbanos em Sampa

Por Reginaldo Assis de Paiva*

“Je vous parle d’un temps, que le moins de vingt ans ne peuvent pas connaître”

Ao ouvir a música Ronda, de Paulo Vanzolini, um crime na avenida São João, pensei, foi na Praça Júlio Mesquita, em nenhum outro local poderia acontecer. Imaginei onde, imaginei a Praça com seu formato triangular, sua fonte com aquelas enormes lagostas de cimento no centro da praça. Antevi o enorme prédio, número 69, na São Paulo, todo um prostíbulo, os bares que o circundam, ponto de encontro com as prostitutas em suas rondas noturnas. Era, lá, sim, o cenário da música, na calçada da São João, entre os bares e o prostíbulo.

Pagano Sobrinho morava na região. Era apresentador de um programa de televisão de grande audiência. No final da tarde, começo da noite, era sempre visto na porta de uma farmácia, ainda hoje existente na mesma quadra do prostíbulo e dos bares. Perdido entre as perdidas, trazia sempre o rosto coberto de maquiagem, falando com uma gesticulação bastante afetada. Conversava, em descontração e atencioso, com todos que o reconheciam. Bem próximo à farmácia, na transversal da São João, ficava o Filé do Moraes, restaurante famoso. Muito o frequentei. Pagano Sobrinho foi um humorista inteligente, cáustico, humor ferino, falava com o sotaque típico dos imigrantes italianos do Brás. Em suas apresentações usava sempre frases que bem definiam o seu cultivado estilo “finocchio”. Algumas de suas histórias e piadas nem sempre eram de compreensão imediata, ao silencio do auditório, dizia “essa é para pensar em casa”. Não raramente ouviam-se risadas retardadas, compreensão tardia. Nenhum palavrão falava, nenhuma citação pornográfica. Era assim. Um amigo, editor do caderno de cultura de um jornal, contou-me de uma longa entrevista feita com ele. O acompanhou, na entrevista, uma jornalista. “Passamos horas conversando. De repente, ele me chamou – vamos ali na cozinha, quero lhe contar uma piada que tem palavrão”. A repórter disse, “pode contar aqui mesmo, eu não me importo”. Ele respondeu, ”mas eu me importo”. Era assim. Seu humor, dizia ele, vinha do olho clínico com que percebia o comportamento dos moradores italianos do Brás e da ronda das prostitutas que, com ele, partilhavam a São João. E exemplificava, “eu, criança, ali no Brás, convivia com os imigrantes, todos pobres. Andar de taxi, para eles era demonstrar sinais claros de ascensão social. Um dia, uma “nona” italiana, estava na janela de sua casa quando viu a filha chegar de taxi e, aos berros, gritou à filha “demora
bastante pra todo mundo ver”. Histórias como essa, contada no sotaque “italiano-do-Brás”, carrega um humor muito caro aos paulistanos, maismente quando contadas no falar carcamano, afetado. Outro caso de suas apresentações, “um garoto, no velório do pai, entra correndo na sala, saltitando e gritando para a mãe, chegou mais uma coroa, chegou mais uma coroa”. Quando do lançamento de LPs de decadentes cantores, ele o mostrava, ao público, às câmeras dizendo, “compre minha amiga, compre, porque daqui há algum tempo você vai poder dizer, só eu tenho”. Seu humor, excessivamente paulistano e bairrista, não conseguia muito espaço, principalmente entre os cariocas, angustiados, na época, com a constatação de que o Rio começava a perder a condição de “capital cultural do país”. Muitos, principalmente a turma da Bossa Nova, tudo faziam para desqualificar o surgimento de novos centros culturais do país, principalmente os de São Paulo e os do Nordeste. Na música, por exemplo, os paulistas Izaurinha Garcia e Agostinho dos Santos, eram ignorados pela imprensa carioca. Vinicius de Moraes vem a São Paulo, quando a Record, com o Fino da Bossa e os Festivais, dominava o mundo musical, dizer que “São Paulo é o túmulo do samba”. As agressões preconceituosas do Paulo Francis eram piores: “os baianos vieram para o Rio para cantar ‘ó que saudades tenho da Bahia”. Se é por falta de adeus, Pt, saudações”. Citava a música de Dorival Caymmi, um grande sucesso na
época.

O restaurante Filé do Morais ficava na rua Vitória, junto à fonte das esculturas de lagostas da praça. O prato que lhe fez a fama e que o identificava na cidade era um alentado pedaço de picanha, regado a doses generosas de alho e uma florestal salada de agrião. Ir ao Morais era um programa rotineiro de minha turma. Meus companheiros de mesa
sempre pediam cerveja, eu não, alho e agrião deturpam sobremaneira o paladar da cerveja. Horrível. A praça era, portanto, assim, em um de seus lados, as prostitutas e seus clientes, em outro o restaurante e seus sofisticados fregueses. Entre uns e outros uma invisível barreira de separação social, dela fazendo um centro de convivência de ignorância mútua entre marginais, prostitutas e classe média.

Dizem de Sampa, de Caetano Veloso, ser a “mais completa tradução” da cidade. Não é. Sampa é uma visão alienada e alienante da cidade, como vista pelos músicos errantes do país, atraídos a São Paulo pelos espetáculos musicais, os festivais nos teatros Paramount e Bandeirantes, os programas musicais da Rede Record – o Fino da Bossa, a Jovem
Guarda e o pouco conhecido Bossaudade, maldosamente apelidado pelos jovens de “festival de pelancas” – os barzinhos de música e restaurantes italianos que proliferavam no bairro do Bexiga e os auditórios de alguns hotéis de maior padrão. Milton Nascimento relata como foi resgatado do anonimato por Agostinho dos Santos quando se apresentava em um destes hotéis. Sampa é a visão de uma cidade concebida em quartos de hotéis e em passagens esporádicas pelo cruzamento das avenidas Ipiranga e São João, esquina que era o resumo da vida cultural e boêmia da São Paulo de então. “Quando vim por aqui, eu nada entendi”, o próprio Caetano confessa em Sampa.

Apenas uma pequena quadra separa o cruzamento da São João com a Ipiranga e a Praça Júlio Mesquita. Nesta quadra ficava o Cine Metro, hoje, uma igreja evangélica. O Metrô exibia, à noite, filmes para adultos, proibidos para menores de 18 anos; aos sábados as “matinês”, filmes e seriados para os adolescentes; nas manhãs de domingo, havia o
programa Zig Zag, exclusivo para crianças, com os desenhos que todos conheciam das revistas em quadrinhos. Entrada de adultos, só para os que estivessem acompanhando as crianças. Costumávamos burlar a vigilância dos funcionários, pedindo a um pai, com várias crianças, que nos “emprestasse” uma delas, para que pudéssemos entrar.

As portas de saída do cinema se abriam para a rua Timbiras, estreita, quase um beco, entre a São João e a Praça da República. Defronte às portas do cinema ficava a cantina Giovanni, restaurante italiano, típico, ao estilo da época, um longo balcão em U, usado como mesa. Sentava-se em banquetas sem encosto. Os pratos eram servidos diretamente
no balcão. Esperava-se por um assento, em pé, atrás daquele que ocupava a banqueta. Todos os pratos constavam do cardápio em italiano. Certa vez assisti a um cômico diálogo entre um freguês e o garçom. Consultando o cardápio, perguntou ele, o que é “envoltini”? O garçom, solícito, explicou em detalhes o que era o prato. Constrangido por pedir
detalhes de um prato disponível em qualquer bar da cidade, o freguês reagiu, “por que escreve tudo em italiano e não em português? Escreve bife rolê, todo mundo sabe o que é”. Pensei, sem dizer, que completaria a frase com “claro, na Avenue Champs Elysée, todo mundo sabe o que é”.

Ao lado do Giovanni, ficava o café Mocambo. De minhas memórias, foi o primeiro café expresso de São Paulo. Uma enorme máquina Gaggia, dominava o ambiente, o nome em grandes letras prateadas ao lado da frase “funziona sensa vapore”. Giovanni e Mocambo eram os locais onde, aos sábados, no final do dia, se reuniam estudantes das escolas
da área central da São Paulo, os da FAU, os da Sociologia, os da Filosofia, os da Economia e os da Poli. Jantava-se no Giovanni, tomava-se café no Mocambo. Depois, grupos de amigos se deixavam ficar na calçada, conversando. Um dia um chofer inexperiente, ensaia estacionar em frente ao Mocambo, onde estávamos em um pequeno grupo. Uma
primeira manobra, desastrada, recebeu de alguém do grupo um comentário jocoso sobre a imperícia do motorista, que reagiu com uma expressão de irado desconforto. Uma segunda manobra, igualmente desastrosa e, o motorista, mais e sempre mais nervoso e irritado com os comentários, tenta uma terceira manobra. Na terceira e última manobra
o carro entrou atravessado na vaga. Ouviu-se o comentário, “sai, turma, que ele vai subir na calçada”. O motorista estacionou de qualquer jeito, desceu do carro com sua companheira e, não sabendo o que dizer e nem como enfrentar o grupo de jovens que o olhavam com ar de riso, disse á sua companheira, “vamos, querida, não se irrite, deve ser um grupo de invertidos”. E se foram, braços dados. Invertido era um sinônimo, não muito ofensivo, que se usava, na época, para homossexual, uma forma cautelosa de se mostrar chateado, sem retaliações. Para o grupo foi a piada final.

“Et nous avions tous de génie,

Sobre a presença de estudantes em balcões de café, encontrei certo dia, na sede do Grêmio da Poli, uma revista da UIC, associação internacional de estudantes, sediada em Praga, com uma série de charges de identificação dos diferentes estudantes universitários. Risível constatar que, na Tchecoslováquia, os diferentes grupos de universitários usavam as mesmas roupas, frequentavam os mesmos ambientes que em São Paulo. Era como se o chargista tivesse se baseado em nosso grupo do Mocambo para fazer seus desenhos. O estudante tcheco de arquitetura foi retratado, de pé, frente a um balcão de café, vestindo um blusão folgado, sem botões, com pequenas alças de tecido por onde se podia passar tamborzinhos, fechando-o. Atrás do balcão, a máquina Gaggia e a mesma frase, “funziona sensa vapore”. Um dos arquitetos da nossa turma de sábado à noite no Café Mocambo usava um blusão como aquele, folgado, com tamborzinhos no lugar de botões.

Das conversas aleatórias na porta do Mocambo alguém perguntou, como se filosofando, sem querer resposta: “por que o lado esquerdo da São João é mais valorizado que o da direita?” Repeti a pergunta ao jornalista amigo Odon Pereira, e dele ouvi a explicação, “para quem circula pela São João, o lado esquerdo oferece menos obstáculos, menos
cruzamentos, tem mais lojas e restaurantes, os cinemas estão lá, o Art Palácio, o Olido, o Marrocos, o Teatro Municipal, o acesso às ruas centrais e à Praça da República”.

Saindo da Júlio Mesquita e percorrendo a pequena quadra da São João, chega-se ao cruzamento com a Ipiranga, o ambiente da música Sampa do Caetano. Três de seus cantos são ocupados por bares e, o quarto, por um Banco. Bancos não pertencem à memória da cidade, nenhuma importância, mas a seu lado, ficava um dos mais tradicionais restaurantes de São Paulo, o Parreirinha. Uma vitrine, aberta para a calçada da Ipiranga, mostrava, como em um licencioso bailado, várias rãs sem pele, já prontas para a panela. E é de todos sabido como as rãs muito se parecem ao corpo feminino. “Não como rãs, me sentiria um antropófago”, disse-me um amigo. Os restaurantes das esquinas do cruzamento ficavam o Bar Brahma, o Jeca e um do qual não mais me lembro do nome. Deste, dizia-se servir o melhor sanduiche de pernil da cidade; nunca testei se verdade ou não. Ao lado da porta ficava um dos personagens mais estranhos da noite paulistana, um homem com uma capa de chuva de xantungue, modelo europeu, as que chegam às
canelas. Ele se encostava na parede, dobrava o corpo e dormia. Em pé, curvado, as mãos ao longo das pernas. “Será que ele está mesmo dormindo?”, foi a dúvida de um amigo, que foi até lá e encostou levemente no homem. Ele apenas deu um passo para o lado, sem se erguer e continuou dormindo.

O Jeca foi um dos melhores e mais frequentados bares da avenida Ipiranga. Pequeno, com portas para as duas avenidas. Ali se comia de pé, no balcão, alheiras e morcilhas. Ao contrário do Giovanni, ponto dos universitários, o Jeca era palco de uma fauna de difícil identificação. Nos fins de semana, em sua porta, ficava uma mulher, vestida como prostituta, se dizia prostituta, agia como prostituta e não era prostituta. Nunca, ninguém conseguiu seus favores. Sei de quem a testou, lhe fazendo variáveis propostas sem nada conseguir. Aos sábados, por volta da meia noite, surgia sempre um grupo em vários carros de luxo, a cada dia com fantasias improvisadas as mais bizarras, desciam, tomavam café no balcão do Jeca, não conversavam com ninguém e depois desapareciam. Não se sabia para onde. Um dia chegaram fantasiados de Nero, carregando liras feitas com tampas de
privada.

“Et nous vivions de l’air du temps”
Além dos restaurantes, na pequena quadra entre a São João e a Praça da República, situavam-se dois cinemas, um frente ao outro, o Excelsior, ao lado do Jeca e o Marabá, do outro lado da rua. Ao lado do Excelsior, um grande restaurante, a Salada Paulista, com bonitos painéis de cerâmica nas paredes, com motivos lusitanos. Logo depois do cruzamento da Ipiranga com a rua 24 de Maio, uma grande livraria, o Palácio do Livro, muito frequentado por estudantes. Na época, as editoras de livros técnicos brasileiros ainda não eram estruturadas, a maioria dos livros eram importados e muito caros. Roubar livros não era pecado, principalmente para os que consideravam o acesso à cultura como privilégio injustificado da sociedade burguesa. Sei de estudantes de arquitetura
que transformaram o avantajado livro Neufert, em uma caixa onde cabiam livros de tamanho normal. Entravam com ele debaixo do braço e, debaixo do braço com ele saiam, sem, aparentemente, nada levar, mas levando algum dentro do Neufert. Passei por uma experiência interessante na Livraria Francesa, localizada no início da Barão de Itapetininga.
Como muito a frequentava, conhecia o gerente e sempre conversávamos. Contou-me ele que uma garota, bonitinha, tentou sair, acintosamente, da livraria com um avantajado livro do Rouault. “Eu a detive e ela teve o desplante de dizer que muito admirava o pintor, que queria um livro dele, mas que não tinha dinheiro. Não soube o que fazer, mandei que ela ficasse sentada enquanto eu ia decidir o que fazer. Ela ficou ali, quieta, sem falar nada. Fazer o que? Falei, olha vai embora e não volte mais aqui. Sabe o que ela me disse? Tá bom, mas pelo menos me dá um livrinho pequeno do Rouault. Sabe o que fiz? Dei a ela um livrinho do Rouault, ela agradeceu e foi embora. Acha possível?”. Acho, respondi.

Enfim, dizer que as músicas de Paulo Vanzolini, não, não retratavam o mundo artificial dos artistas, não retratavam a São João com a Ipiranga. Retratavam esta cidade a partir de seus próprios umbigos, a Júlio Mesquita, com suas prostitutas e proxenetas, a Praça Clovis, com seus operários e seus “lanceiros” batendo carteiras. Ronda é a cidade dos marginalizados, dos trabalhadores. Ouvi de Paulo Vanzolini, em um show, que achava ótimo que, ao se escolher a música símbolo de São Paulo, se tenha escolhido Ronda, uma música de putaria. Sampa é a da cidade dos adolescentes rebeldes, da classe média e dos estudantes.

Júlio Mesquita e Ipiranga foram ambientes incomunicáveis, apesar de separados apenas por uma pequena quadra na avenida São João. Hoje, nenhum destes locais subsistiu, a Ipiranga se transformou em uma via expressa, os restaurantes desapareceram, as livrarias fecharam, os cinemas viraram igrejas, edifícios foram invadidos por semtetos, os bares só servem hambúrgueres e, nas calçadas, pessoas dormem sob gastos cobertores. Nem Sampa, nem Ronda. Se ali voltarmos será como nos versos de Caetano, “quando vim por aqui, eu nada entendi”.

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REGINALDO A. DE PAIVA*

Diretor secretário da Diretoria Executiva (2014/2015); representante do Instituto de Engenharia na Comissão Pré-Centro e na Operação Urbana Águas Espraiadas e na Comissão Licitatória de Concessões Rodoviárias (Secretaria de Estado dos Transportes); membro do Conselho Editorial da Revista Engenharia.

*Os artigos publicados com assinatura, não traduzem necessariamente a opinião do Instituto de Engenharia. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.