Os caminhões e ônibus que fazem o Brasil avançar em veículos elétricos

Fatores como alta carga tributária e dólar elevado fazem a adoção de carros elétricos caminhar a passos de tartaruga no Brasil. Mas há um segmento que, a despeito dos empecilhos, avança com determinação pelo país: o de caminhões e ônibus elétricos.

Esses veículos circulam há algum tempo pelas ruas brasileiras, em caráter experimental. Mas podemos dizer que 2021 representa uma virada: neste ano, vimos o anúncio de produtos como o caminhão e-Delivery, da Volkswagen, e do chassi de ônibus eO500U, da Mercedes-Benz.

Não estamos falando de produtos importados ou feitos apenas para demonstração. Ambos são veículos elétricos prontos e desenvolvidos no Brasil para a realidade local. Você vai saber mais sobre eles nas próximas linhas e, de quebra, conhecerá a experiência da Transwolff, uma empresa que, desde 2019, opera uma frota de ônibus elétricos na capital paulista.

Olha o caminhão elétrico passando na sua rua

Na sua próxima ida ao mercado, dê uma olhada nos arredores. Talvez você encontre um caminhão da Ambev parado por ali. Responsável por marcas como Antarctica, Brahma e Skol — para citar só as cervejas mais populares —, a companhia e seus parceiros têm uma frota para distribuição de bebidas formada por milhares de caminhões.

Até 2025, essa frota deverá incluir 1.600 unidades do e-Delivery, um caminhão 100% elétrico que a Volkswagen Caminhões e Ônibus (VWCO) anunciou oficialmente em julho. O veículo foi desenvolvido no Brasil, como você já sabe, e teve a própria Ambev como parceira nesse trabalho.

São duas versões: o e-Delivery 11 tem Peso Bruto Total (PBT — basicamente, indica o peso máximo suportado, incluindo o do próprio veículo) de 10,7 toneladas; maior, o e-Delivery 14 tem PBT de 14,3 toneladas e, por isso, conta com dois eixos na traseira. Em ambos, a recarga completa de bateria dura, em média, três horas.

Os dois veículos têm capacidades diferentes entre si, mas contam com a mesma proposta: realizar entregas dentro de cidades. É o que conta Walter Pellizzari, gerente de estratégia corporativa da Volkswagen Caminhões e Ônibus, ao Tecnoblog:

A gente entende que entrega em cidade é o grande foco desse produto. Há dois grandes tipos de entregas, vamos chamar assim: a entrega normal, que é o caminhão que chega nos mercados ou na sua casa, por exemplo, e a entrega de bebidas. (…) Desenvolvemos a plataforma para esses dois tipos de entregas, que são as principais no ambiente urbano.

Não pense que este é um produto meramente adaptado de um caminhão a diesel. O e-Delivery foi idealizado desde o começo para ser totalmente elétrico. Para tornar o projeto realidade, a VWCO investiu mais de R$ 150 milhões e formou o e-Consórcio, um grupo de empresas que contribuem para o projeto, produção e manutenção do ecossistema do veículo.

Pellizzari explica, por exemplo, que o Grupo Moura trabalha com a CATL para fornecer baterias, que a Bosch e a WEG disponibilizam componentes — esta última responde pelo motor — e que a Semcon oferece suporte de engenharia.

O resultado dessa parceria é um caminhão elétrico que suporta até 6.320 kg ou 9.055 kg (versão maior), tem potência de 300 kW (equivalente a 408 cv), alcança autonomia de até 250 km (de acordo com a configuração de baterias), conta com sistema de regeneração de energia e, claro, não emite gases poluentes.

Mas desenvolver o caminhão elétrico em si é apenas parte do processo. Também é preciso oferecer aos frotistas assistência para manutenção dos veículos, treinamento operacional e montagem da estrutura das recargas, como explica Pellizzari:

A grande diferença [do e-Delivery] é que a gente olha para tudo [todo o ecossistema do produto]. Quando vamos falar com um potencial cliente, a ideia é também irmos com os parceiros de infraestrutura, como ABB, Siemens ou GD Solar para entendermos que tipo de estrutura é necessário naquele local para carregamento, qual a melhor combinação de carregadores, como fornecer energia, enfim”.

A questão do treinamento envolve até o uso de unidades de teste para orientar socorristas (como os bombeiros) sobre como atuar em caso de acidente com o caminhão elétrico. É uma atitude louvável. Basta lembrarmos que, em abril, bombeiros no Texas tiveram que pedir orientações à Tesla para extinguir o incêndio de um Model S 2019 acidentado.

Que ônibus silencioso, motorista!

No Brasil, a Mercedes-Benz oferece uma grande diversidade de chassis para ônibus, desde opções com motorização frontal para veículos curtos até modelos para os imponentes DDs (ônibus de dois andares) com quatro eixos e 15 metros de comprimento.

Em agosto, a companhia adicionou mais um produto ao seu portfólio nacional: o eO500U, uma chassi totalmente elétrico e com motorização traseira. O projeto foi desenvolvido no Brasil para aplicação urbana (dentro de cidades).

Não que esse seja um território novo para a Mercedes-Benz. Na Europa, a companhia comercializa há alguns anos o eCitaro, ônibus elétrico totalmente desenvolvido por ela. Não seria mais fácil simplesmente trazer esse veículo para o Brasil, então?

Na verdade, não. Quem explica é Walter Barbosa, diretor de vendas e marketing de ônibus da Mercedes-Benz no Brasil:

[O eO500U] é um projeto para o Brasil porque as leis são distintas, as normas são diferentes. [Na Europa] o carro [ônibus elétrico] tem que rodar por dez anos, no Brasil, 15. (…) Lá eles se preocupam em calefação do veículo, os ônibus têm sistema de aquecimento para os usuários; aqui a preocupação é resfriar [por exemplo].

Existe um outro fator apontado pelo executivo: enquanto na Europa o ônibus é integralmente montado por uma única companhia, no Brasil e outros países, esse mercado funciona com uma empresa fornecendo o chassi enquanto outra cuida da carroceria — este trabalho é feito no Brasil por companhias como Caio Induscar, Comil e Mascarello.

É preciso levar em conta ainda que o eO500U foi projetado para ser totalmente adequado às condições de rodagem no Brasil. Não por acaso, a Mercedes-Benz levou cerca de cincos anos e gastou R$ 100 milhões para desenvolver o produto.

Surgiu então um chassi totalmente elétrico, que recebe carrocerias de até 13,2 m de comprimento, transporta até 83 passageiros e conta com recursos como freio eletrônico EBS e sistema de regeneração de energia. Barbosa enfatiza o apelo ambiental:

O [veículo] elétrico é um produto com emissão zero [de poluentes] na operação. Não tem CO2, não tem NOX e não tem material particulado. (…) A cadeia toda, que envolve produção e descarte da bateria, ainda é um desafio para todos no mundo, mas na operação em si o elétrico tem emissão zero, ou seja, é uma tecnologia que veio para ficar, ela não é transitória.

Autonomia é outro ponto de destaque do eO500U. O veículo pode ser montado com quatro ou seis packs de bateria e rodar por até 250 km com uma única recarga, média condizente com as necessidades de uma operação urbana.

Walter Barbosa explica ainda que o sistema do chassi é baseado em corrente contínua, que tem um custo um pouco mais elevado, mas permite recarga completa mais rápida: em média, o procedimento dura duas horas e meia. Cada carregador pode abastecer dois ônibus simultaneamente, mas, neste caso, o tempo de recarga aumenta.

Obviamente, a Mercedes-Benz oferece assistência aos frotistas para instalação da infraestrutura, manutenção e treinamento. Barbosa conta ainda que, para passageiros e motoristas, o veículo é confortável por ser silencioso e eficiente:

Você oferece um carro elétrico, de piso baixo [a maior parte do veículo não tem degraus], não tem troca de marcha, tem uma força brutal porque o motor elétrico é altamente eficiente, não é igual ao motor a diesel.

Motores a combustão, comparados aos elétricos, têm uma eficiência muito baixa porque parte da energia gerada é perdida com temperatura, dissipação de calor e por todos os periféricos que “roubam” a potência do motor.

A experiência de operar uma frota de ônibus elétricos

Ônibus elétricos não são novidade em São Paulo. A cidade mantém um sistema de trólebus desde 1949. Esses veículos ainda circulam, mas em pequena quantidade: são cerca de 200 unidades frente a um frota total de 14 mil veículos, aproximadamente.

A necessidade de uma rede aérea de cabos é o principal obstáculo para esse tipo de operação. É por isso que a SPTrans, empresa municipal que gerencia o transporte por ônibus na capital paulista, vem dando abertura a veículos elétricos movidos a bateria.

Se você pegar a linha 6030-10 (Unisa Campus 1 / Terminal Santo Amaro), vai ter a chance de andar em um deles. Hoje, a frota de elétricos dessa linha é composta por 18 ônibus, todos operados pela empresa Transwolff.

Desses veículos, 12 têm carroceria Caio e seis são Marcopolo. Porém, todos são baseados no chassi elétrico D9W, da chinesa BYD.

Ao Tecnoblog, Paulo Lima, gerente de tecnologia da Transwolff, relata que o conforto e o silêncio desses veículos os fazem ser muito bem aceitos pelos usuários e funcionários.

Mas essa é só uma parte da equação. A capacidade operacional desses ônibus também importa. Sobre isso, o executivo revela que, na linha 6030-10 especificamente, os veículos elétricos dão conta da demanda por conseguirem rodar, em média, 210 km por dia mais uma margem de 15% a 20% sobre essa quilometragem para saída e retorno à garagem.

Lima conta que também há vantagens na manutenção:

Nas questões de manutenção, é muito diferente. A redução [de custos] é muito grande. Você não tem motor a combustão, bomba injetora, radiador, uma turbina, um [eixo] cardan, enfim, é um carro que é limpo. A partir do momento em que você tira esse monte de itens, você tem uma manutenção muito menor.

Porém, a inclusão desses ônibus na frota da Transwolff exigiu grandes investimentos. Cerca de R$ 4 milhões foram gastos somente com a montagem de estrutura de recarga e manutenção. São 18 carregadores e 5 mil metros de cabos, exemplifica Lima.

Adaptações na rotina operacional também foram necessárias. Como esses ônibus levam cerca de quatro horas para serem completamente recarregados, a empresa realiza esse procedimento à noite, segundo Lima: “nossa operação começa a se encerrar gradativamente a partir das 21:00 e à medida que os veículos vão retornando para a garagem acontece o abastecimento”.

quer dizer, porém, que há problemas frequentes com esse componente:

Normalmente, a bateria não apresenta defeito no todo porque elas são células. Cada pack [de bateria] tem uma composição de 398 células. Se alguma dessas células tiver problemas, basta substituí-la e fazer um trabalho de rebalanceamento. (…) Você tem a possibilidade de reparo de células.

Para Lima, os ônibus elétricos estão vindo para ficar. Os custos de aquisição e estrutura ainda são altos, mas alguns números apontam para um futuro favorável.

O executivo revela, por exemplo, que de novembro de 2019 a setembro de 2020 a Transwolff economizou cerca de R$ 430 mil em combustível e deixou de emitir mais de uma tonelada de CO2 com a operação dos ônibus elétricos.

O futuro é agora! Ou quase isso

Você deve ter reparado que todos os veículos abordados aqui são direcionados a operações urbanas. Não teremos caminhões e ônibus elétricos percorrendo as rodovias do país? Teremos. Mas operações rodoviárias exigem veículos com autonomia muita acima de 250 km.

Para chegarmos a isso, alguns obstáculos devem ser superados. Um deles é o custo. Só o e-Delivery tem preço entre R$ 780 mil e R$ 980 mil, ou seja, é duas ou três vezes mais caro que caminhões a diesel equivalentes.

Outro é a falta de estrutura. Uma das razões pelas quais caminhões e ônibus elétricos estão ganhando espaço no Brasil é o fato de operadores terem garagens ou centros operacionais que suportam a instalação de estações de recarga e manutenção.

Mas, para que as frotas de veículos elétricos alcancem números realmente altos, sejam eles urbanos ou rodoviários, é preciso fazer mais, muitos mais. Unidades rodoviárias precisariam de mais baterias ou de versões com capacidade maior, só para dar um exemplo.

Sobre esse ponto, Walter Pellizzari, da WVCO, explica que o custo elevado dos veículos elétrico está fortemente atrelado às baterias, que são montadas no Brasil, mas têm células importadas. “A gente acaba tendo bastante exposição ao câmbio [monetário]”, completa.

O executivo também chama a atenção para a questão dos impostos:

Como ele [o caminhão elétrico] é um veículo duas ou três vezes mais caro, as taxas aplicadas a ele são proporcionais. (…) Será que não valeria a pena ter um ajuste [de impostos] pelo menos até que a escala aconteça e o preço naturalmente baixe? Porque, no final, a gente não está pedindo que não tenha impostos, mas uma adequação dessa diferença de preço de aquisição.

Apesar das dificuldades atuais, as empresas do setor de caminhões e ônibus elétricos olham para o Brasil com otimismo. Prova disso é que a Mercedes-Benz almeja vender de 100 a 150 unidades do eO500U por ano, começando em 2022.

Além disso, em parceria com a Eletra, a companhia vai fabricar os chassis de cerca de 90 ônibus superarticulados — com 23 m de comprimento — que irão ser operados pela empresa Metra no BRT ABC, na região metropolitana de São Paulo.

As expectativas também são altas para o e-Delivery. 100 caminhões já foram vendidos para a Ambev que, lembre-se, tem intenção de ter 1.600 unidades do modelo em sua frota. A Coca-Cola já encomendou 20 unidades e sabe-se que a JBS também vai testar o produto.

De acordo com a WVCO, o interesse pelo seu caminhão elétrico tem sido grande, inclusive por operadores de outros países.

Vale destacar que a Ambev também tem uma acordo para adquirir caminhões elétricos produzidos em parceria pela FNM e a Agrale.

Na Transwolff, o trabalho com os ônibus elétricos vai continuar. Paulo Lima revelou que, em breve, a companhia testará por alguns meses mais um ônibus elétrico, este produzido pela chinesa Higer. O ônibus já está a caminho do Brasil.

Fonte: Tecnoblog