IE NA MÍDIA – Tudo que o Brasil podia ser

O objetivo é um país onde a industrialização, por definição, depende da saúde das florestas e dos rios

“Com sol e chuva você sonhava”, cantava Milton Nascimento naquele início dos anos 70, tempo mais sombrio do regime militar e das difíceis escolhas à frente dos jovens que buscavam outros caminhos. “Queria ser melhor depois, você queria ser o grande herói das estradas, tudo que você queria ser”.

Há quase meio século as palavras de Márcio Borges, coautor da canção, embalavam a resistência ao governo que até hoje encanta o presidente Jair Bolsonaro. Há um ano, elas ganharam atualidade em dueto de Milton e Seu Jorge, que revelou em um especial de televisão como a música havia ajudado a despertar sua consciência política.

O álbum Clube da Esquina, que incluía a canção, foi lançado em 1972, mesmo ano em que o governo militar inaugurava a rodovia Transamazônica e estimulava a ocupação da floresta por migrantes nordestino e grandes fazendas de gado. Para garantir a soberania brasileira, dizia-se naquele momento, era preciso ocupar a região.

Aos críticos das decisões políticas e ambientais daquela época, restava uma sugestão contida em adesivos que circulavam nas janelas dos automóveis dos defensores do regime, junto a uma bandeira nacional: “Brasil, ame-o ou deixe-o”.

O país mudou muito de lá para cá. Reencontrou-se com a democracia, depois de uma campanha por eleições diretas que contou com o entusiasmo daqueles jovens dos anos 70 que amavam o Brasil de outra maneira e decidiram ficar. Sediou uma grande conferência internacional sobre meio ambiente e desenvolvimento, a Rio 92.

Ao longo dos anos, adotou um novo olhar para a Amazônia e para a questão ambiental. Foi aos poucos conquistando o respeito da comunidade internacional com políticas de combate ao desmatamento e de promoção de novas maneiras de desenvolver a região. O Brasil passou a ser visto como referência nos debates internacionais sobre meio ambiente e desenvolvimento.

Clima

Tudo isso foi interrompido após a eleição de um presidente que, nostálgico das práticas do regime militar – políticas, econômicas e ambientais – nunca escondeu seu desejo de repetir antigas fórmulas para promover o crescimento na Amazônia. Nada de criar reservas ambientais e indígenas ou coibir o desmatamento ilegal.

O tempo mostrou os resultados de suas escolhas. Em 2020, o Brasil perdeu 11 mil quilômetros quadrados de florestas na região, área equivalente a sete vezes a do município de São Paulo.

Segundo dados apresentados em artigo no jornal Valor Econômico pelo diretor executivo da The Nature Conservancy no Brasil, Ian Thompson, o compromisso assumido pelo país junto à Convenção do Clima era o de limitar o desmatamento no período a três mil quilômetros quadrados.

As imagens das grandes queimadas ocorridas na região desde 2019 espalharam-se por todo o mundo. E o carbono emitido pelas queimadas, é bom lembrar, responde por 75% das emissões brasileiras de gases que provocam o efeito estufa, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Pois é com essas credenciais que o Brasil se apresenta à Cúpula de Líderes sobre o Clima, nos dias 22 e 23 de abril, que terá como anfitrião o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden. Um encontro virtual de 40 chefes de Estado e de governo a ser usado por Biden como vitrine de sua almejada liderança na questão ambiental.

Bolsonaro bem que tentou demonstrar boa vontade, ao enviar carta ao novo presidente americano com promessas de empenho na área ambiental. Mas ele participa da conferência dias depois da divulgação de denúncia do superintendente da Polícia Federal no Amazonas, Alexandre Saraiva, contra o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, por tentar obstruir investigações sobre extração de madeira ilegal na Amazônia.

Bioeconomia

Não precisava ser assim. O governo brasileiro se apresenta fragilizado à cúpula de Biden e a outros debates internacionais sobre o tema por causa de suas próprias decisões políticas. E certamente não terá sido por falta de opções.

A visão de Bolsonaro sobre a Amazônia é descendente direta daquela que os militares tinham sobre a região nos anos 70 do século passado. Algo como se a floresta fosse um obstáculo ao desenvolvimento da região.

Muitos textos científicos têm demonstrado que a destruição da floresta prejudica não só o clima do planeta como a própria agricultura do cerrado brasileiro, beneficiada pela umidade amazônica que percorre os céus do país até chegar à região Centro Oeste.

Um novo estudo, intitulado Amazônia e Bioeconomia e publicado pelo Instituto de Engenharia, demonstra como a floresta pode ser ainda muito mais útil.

Segundo a análise, nas últimas décadas apenas dois caminhos vinham sendo apontados para a região. A chamada primeira via indicava a necessidade de se isolar completamente a floresta, como forma de garantir a sua preservação. A segunda era baseada em uso intensivo de recursos naturais, por meio da pecuária, da mineração e da geração de energia.

O documento aposta em uma Terceira Via para o desenvolvimento da Amazônia. Trata-se, segundo o texto, de uma “bioeconomia inovadora, movida por uma rica biodiversidade e com raízes profundas na Amazônia, para gerar bioindústrias locais, diversificadas e com produtos de alto valor agregado em todos os elos da cadeia, gerando empregos e inclusão social”.

Amazônia 4.0

O estudo sugere a adoção de um programa chamado Amazônia 4.0, baseado em investimentos públicos e privados em ciência, tecnologia e inovação, para que os ativos da biodiversidade da Amazônia sejam descobertos e industrializados no Brasil. Propõe a criação, na região, de um hub de excelência em CT&I.

Ao defender sua proposta, os autores usam dois números como exemplos. Enquanto a rentabilidade anual por hectare com a produção de carne e soja na região limita-se a R$ 604, a rentabilidade com produtos regionais in natura como açaí, cacau e castanha chega a R$ 12.300.

Por meio da pesquisa, o potencial se multiplica. Segundo dados da Embrapa, para cada um real investido em pesquisa e manejo de açaivais nativos na Amazônia Oriental, o retorno para a sociedade é de R$ 44,28.

Atualmente, como observam os autores do estudo, os dois países que mais ganham com a madeira são a Suécia, onde as árvores demoram até 70 anos para amadurecer por causa do frio, e a Itália, que usa seu design e madeira importada para lucrar com a exportação de móveis.

Enquanto isso, o Brasil se limita a exportar toras de madeira – em 80% dos casos obtida de forma legal. Os conhecimentos hoje já

existentes indicam a existência de modelos sustentáveis de exploração comercial da madeira, como o que cerca de mata preservada as espécies a serem derrubadas e o modelo agroflorestal considerado de “alta densidade”.

A bioeconomia, ressaltam os pesquisadores, busca a descarbonização, objetivo da cúpula convocada por Joe Biden. E, com ela, o Brasil teria “potencial de ser um dos países mais competitivos globalmente”, desde que aposte em uma aliança entre a ciência e a indústria.

“A Terceira Via amazônica representa uma oportunidade emergente para desenvolver uma economia verde que aproveite todo o valor de uma floresta produtiva permanente para, com a ajuda de novas tecnologias físicas, digitais e biológicas já disponíveis ou em evolução, estabelecer um novo modelo de desenvolvimento econômico socialmente inclusivo”, define o cientista e engenheiro Carlos Nobre, coordenador do estudo.

O objetivo é um país onde a industrialização, por definição, depende da saúde das florestas e dos rios. E que, ao multiplicar empregos sem causar danos ao meio ambiente, beneficia populações locais e o combate à pobreza. Tudo que o Brasil podia ser.

Fonte: VEJA