Capítulo 1. EMPRESAS DA FLORESTA
O universo de startups que está nascendo na Amazônia com foco em atividades sustentáveis pode ser exemplo para fomentar a bioeconomia que governos, grupos empresariais, investidores e ambientalistas buscam para desenvolver a região e gerar renda para a população sem derrubar ou queimar a floresta. Baseados em produtos e projetos locais, que vão de açaí a cosméticos, pequenos negócios inovadores começam a transformar o cenário regional.
A economia verde, ou de baixo carbono, deve ajudar a região amazônica – que representa cerca de 60% do território brasileiro – a dar um salto em sua participação no Produto Interno Bruto (PIB), hoje de apenas 8%, segundo avaliação de especialistas no tema.
O caminho trilhado por um número crescente de startups amazônicas para essa nova economia envolve comunidades ribeirinhas, indígenas, quilombolas e agricultores familiares. A lógica está em aplicar ciência e tecnologia a dezenas de ativos da região desde o início da cadeia de produção para aumentar o valor dos produtos e beneficiar as populações locais.
Fabricante de cosméticos feitos com óleos extraídos de plantas da região, a startup Biozer se prepara para exportar seus produtos para os Estados Unidos, Emirados Árabes e Europa. Já o Café Agroflorestal de Apuí utiliza grãos de plantações em áreas sombreadas pela floresta e será enviado para a Alemanha. Os chocolates da De Mendes são feitos com cacau nativo colhido por ribeirinhos e índios e chegam a consumidores de vários Estados e também do exterior.
Dono da maior biodiversidade vegetal do mundo, o Brasil possui cerca de 50 mil espécies de plantas, das quais pelo menos 20 mil endêmicas – que ocorrem somente no País. Embora todos os biomas nacionais tenham capacidade de desenvolver uma economia baseada na biodiversidade, é a região da Amazônia que oferece as condições para investimentos imediatos.
60% do território
brasileiro é ocupado pela região amazônica, mas sua participação no PIB nacional é de apenas 8%, segundo especialista
Estudo feito pelo WRI Brasil, lançado na semana passada com base em dados do censo agropecuário do IBGE, mostra que 74% das atividades extrativistas não exaustivas (a partir de sementes, folhas, frutos, óleos, sem levar à derrubada da árvore) estão na Amazônia.
Idealizador do projeto Amazônia 4.0, o pesquisadorCarlos Nobre, do Instituto de Estudos Avançados da USP, define que, para a região, o conceito de bioeconomia visa a promover sistemas de produção baseados no uso e na conservação dos recursos biológicos da floresta em pé. Ele compara que as atividades extrativistas realizadas na região, apesar de ainda em pequena escala, já são mais lucrativas do que desmatar. O valor anual da produção de carne e soja, por exemplo, é de R$ 604 por hectare; no caso do açaí, cacau e castanha, esse montante chega a R$ 12,3 mil.
Especialista do WRI no tema, o economista e biólogo Rafael Feltran-Barbieri vai na mesma linha e calcula que o extrativismo não exaustivo é particularmente rentável para os pequenos proprietários. “Para as pequenas propriedades, os produtos nativos cultivados trazem renda média de R$ 3.100 por hectare ao ano. Quem faz rotação de soja e milho tira cerca de R$ 1.762/ha/ano. Já a pecuária de corte rende apenas R$ 1.250/ha/ano”, afirma.
“Mas a exploração de produtos in natura é só a ponta do iceberg para a bioeconomia. Há uma grande diversidade de substâncias que podem ser produzidas em escala”, diz.
Na avaliação de Carlos Nobre, para isso vingar como uma alternativa econômica, é preciso investir em uma bioindustrialização local, que possa beneficiar os produtos, gerando mais renda e empregos. “A indústria 4.0 no mundo moderno tem, logicamente, um caminho que é o da bioindústria fazendo um produto que chega ao consumidor”, explica. “Mas esse não é o maior mercado possível, mas sim o chamado ‘business to business’, em que os produtos de uma indústria fluem para outra maior, mais próxima dos centros consumidores ou de centros exportadores, que faz o produto final. Esse potencial tem de ser desenvolvido, porque ele é bem grande.”
Para o economista José Roberto Mendonça de Barros, há aí uma enorme oportunidade. “Com pesquisa, que foi justamente o que transformou o agronegócio brasileiro, é sim possível desenvolver esses projetos e ganhar escala”, afirma. O caminho, segundo ele, passa pela transformação de matérias-primas em novos materiais e pelo pagamento por serviços ambientais, como dar a proprietários de terra uma renda para preservar uma nascente.
Mendonça de Barros ressalta que a pandemia acentuou a tendência de que a sustentabilidade é indispensável. “Ganha força a ideia de que é possível transformar partes do sistema de produção em direção à sustentabilidade. E isso vai entrar na experiência das grandes empresas.”
“É a primeira vez que a gente vive uma pressão tangível de quem aloca o capital para que o País faça a transição para práticas mais sustentáveis”, diz Ricardo Zibas, sócio-diretor da KPMG, que viu crescer neste ano em 20% a procura de empresas por consultoria sobre iniciativas em relação à pauta ESG, sigla em inglês para os aspectos ambiental, social e de governança.
“Com pesquisa, que foi justamente o que transformou o agronegócio brasileiro, é sim possível desenvolver esses projetos e ganhar escala.”
Ricardo Abramovay, professor do Programa de Ciência Ambiental do Instituto de Energia e Ambiente (IEE) da USP, lembra que nos Estados Unidos, a bioeconomia hoje já corresponde a 5% do PIB do país, de acordo com um estudo das Academias de Ciências, de Engenharia e de Medicina dos EUA. Mas diz que esse modelo é muito baseado na aplicação de ciência e tecnologia para desenvolver recursos biológicos voltados à produção de energia, fibra e alimentos.
“Essa bioeconomia contemporânea não é a biodiversidade florestal. Aqui temos muito a ganhar se concentrarmos os esforços de inovação para fazer emergir uma economia da biodiversidade florestal, que respeite o conhecimento dos povos tradicionais, mas não se limite só a ele”, afirma.
74%
Ele pontua que esse movimento também tem de levar em conta as dificuldades, principalmente de infraestrutura, que ainda marcam a Amazônia, como o acesso à energia.”Há um certo pensamento em torno da bioeconomia de que basta juntar os recursos da floresta com investimento tecnológico. Tem de fazer com que seja uma resposta para os problemas das populações da região que são muito elementares, como dificuldade de deslocamento, falta de saneamento”, complementa. E para isso, diz, há que se investir em ciência e tecnologia locais.
PROGRAMAS DE ACELERAÇÃO
Ainda não há dados precisos sobre o número de startups da floresta, mas, em duas chamadas feitas nos últimos dois anos pelo Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável da Amazônia (Idesam) para programas de aceleração de negócios de impacto promovido pela Plataforma Parceiros pela Amazônia (PPA) foram inscritos 280 projetos.
O instituto captou R$ 6 milhões no período e escolheu 30 empreendedores para participar de cursos de capacitação, monitorias e oficinas sobre como conciliar o desenvolvimento econômico e a conservação da Amazônia. Desse grupo, 12 receberam investimentos híbridos, parte obtido no mercado e parte do capital filantrópico do Idesam, que tem entre seus apoiadores a Sitawi e o Fundo Vale.
“Não tem como manter a floresta de pé sem gerar renda para a população local”, afirma Mariano Cenamo, engenheiro florestal e diretor de Novos Negócios do Idesam.
“Não tem como manter a floresta de pé sem gerar renda para a população local.”
O Idesam também coordena o Programa Prioritário de Bioeconomia (PPBio) do governo federal, que tem como base a Lei de Inovação e possibilita às empresas do Polo Industrial de Manaus incentivo tributário para investimentos em pesquisa e desenvolvimento em projetos ligados à bioeconomia.
Iniciado em março do ano passado, o programa recebeu 73 inscrições e captou R$ 9,5 milhões entre sete empresas que vão fazer aportes em 14 projetos selecionados. “Conseguir esse valor em um ano e mantê-lo mesmo com a crise do coronavírus mostra que há uma demanda reprimida e que as empresas estão olhando os investimentos sustentáveis como oportunidade de negócios”, diz Carlos Gabriel Koury, também engenheiro florestal e responsável pelo PPBio.O programa envolve parcerias com Instituições de Ciência e Tecnologia (ICTs) e universidades públicas e privadas.
Capítulo 2. COSMÉTICO 100% NATURAL
Cosméticos 100% naturais produzidos em Manaus começarão a ser exportados para Estados Unidos, Dubai e Europa ainda este ano. Os embarques só não ocorreram ainda porque a pandemia da covid-19 atrapalhou os planos da startup Biozer, que utiliza óleos extraídos de árvores e plantas da Amazônia na produção de óleos fitoterápicos, cremes e, em breve, gel, espuma para limpeza facial e suplemento alimentar feito de frutas da região amazônica.
O primeiro embarque para os EUA estava previsto para abril, mas foi travado pela quarentena. A Biozer já tem o selo Halal, certificação que a credencia a exportar para o mercado árabe e está perto de obter o selo francês Ecocert, que abre portas na Europa para produtos orgânicos. Contatos para exportação estão em andamento.
Antes uma empresa de pesquisa e desenvolvimento criada em 2008 pelo biólogo Carlos de Souza Pinheiro, funcionário do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), a Biozer entrou para uma incubadora de startups há três anos, quando seu filho Danniel assumiu o negócio.
Formado em biotecnologia, Danniel, hoje com 26 anos, se incomodava com o fato de a Amazônia ser fornecedora de matéria-prima e não ter uma fábrica de cosméticos naturais. Em parceria com o gaúcho Domingos Amaral – administrador de 53 anos que buscava um projeto para investir –, ele transformou em produtos os ativos da floresta que o pai pesquisa.
No Centro de Incubação e Desenvolvimento Empresarial (Cide), ligado à Federação das Indústrias do Amazonas, os sócios começaram a produzir essências de óleos de copaíba, andiroba, açaí, guaraná, tucumã e outros frutos locais fornecidos por cooperativas de extrativistas do interior do Estado.
Na sequência vieram argilas para máscaras faciais e corporais com óleos que potencializam seus efeitos. Os sócios criaram a marca Simbioze Amazônica para seus produtos naturais, veganos e sustentáveis. “Tem muito produto que usa selo verde, mas quando é feita a leitura da composição percebe-se que tem extrato e produtos químicos que agridem a pele”, afirma Danniel. “Queremos levar produtos premium para o Brasil e o mundo com o mesmo óleo que o caboclo e o índio usam há centenas de anos, sem nenhum aditivo”, acrescenta Amaral.
CADEIA DE FORNECIMENTO
A primeira dificuldade do processo foi encontrar insumos de qualidade e rastreabilidade. Com ajuda de entidades ambientais e cooperativas, eles criaram um projeto de capacitação dos extrativistas para garantir o padrão do óleo necessário para o processo industrial.
“Queremos levar produtos premium para o Brasil e o mundo com o mesmo óleo que o caboclo e o índio usam há centenas de anos.”
O preço do óleo é definido pelas cooperativas de acordo com o volume da safra. “O preço é o mesmo que pagaríamos se o óleo viesse de São Paulo, ou seja, agregamos valor na extração, pois não há atravessadores”, informa Amaral.
Hoje a empresa tem três linhas de produtos de óleos fitoterápicos e hidratantes de andiroba, breu branco, castanha, copaíba, patauá, pracaxi e priprioca, e argila para máscaras faciais e corporais de argila branca, cupuaçu, açaí e guaraná. Em setembro será lançada uma quarta linha, com gel, gel esfoliante e espuma de limpeza. Batizada de Energetic Face, a linha “vai unir a força do açaí e os benefícios da copaíba”, afirma Amaral.
FRUTAS ENCAPSULADAS
No próximo ano chegará outro produto inovador, que são suplementos alimentares de frutas desidratadas. As cápsulas serão feitas de açaí, guaraná e camucamu, “fruta que tem 30 vezes mais vitamina C do que a laranja”, explica Danniel. Os itens da marca são vendidos pela internet, em lojas de produtos naturais e para clínicas estéticas.
Os sócios têm planos para uma fábrica maior, que deve multiplicar por dez a capacidade atual, de 4 mil unidades diárias. Esse projeto está orçado em R$ 8 milhões e, diz Amaral, já há fundos interessados no negócio. Até agora foram investidos R$ 1,2 milhão na startup, sem contar o aporte que veio pelo PPBio, programa governamental que dá incentivos fiscais para quem investe em P&D.
A Biozer mantém programa de ajuda à comunidades para restaurar áreas degradadas e escolheu como mascote o sauim-de-coleira, sagui endêmico de Manaus em risco de extinção. Ele se alimenta de frutos silvestres que estão desaparecendo com o avanço da zona urbana. “Buscamos formas de fomentar o reflorestamento da alimentação dele para que possa sobreviver em outras áreas”, diz Amaral.
Capítulo 3. CHOCOLATE NATIVO
Professor universitário e pesquisador formado em química, com cinco especializações e dois mestrados, César de Mendes largou a vida acadêmica quando cursava o doutorado em razão de um problema de saúde. Montou uma empresa de consultoria e, em 2005, foi contratado para fazer o planejamento de desenvolvimento econômico do município de Medicilândia, no Pará, maior produtor de cacau do País.
Filho de mãe quilombola e pai ribeirinho, ele nasceu em Macapá (AP), mas ainda criança mudou-se com a família para Belém. Da infância, sempre se lembrava da avó e da mãe fazendo chocolates no pilão, de forma rústica. Ao chegar em Medicilândia, depois de ter passado vários anos estudando em Belém e São Paulo, e de viajar por todo o País quando era consultor, ele se encantou pelo cacau selvagem, colhido por comunidades amazônicas.
Mendes se deu conta de que, na época, não havia nenhuma fábrica de chocolates de cacau nativo no Estado e decidiu montar uma em parceria com uma cooperativa de colhedores de cacau de Medicilândia, batizada de Amazonas Cacau. A partir daí, mergulhou em pesquisas sobre o produto, sobre processos de produção e novas tecnologias.
“Sempre se teve ideia de que o cacau veio da América Central ou da Europa. Não se falava nada do Brasil e muito menos da Amazônia. Isso me incomodava muito.”
A parceria com a cooperativa não deu certo e ele levou a empresa para Belém, que fica a mil km de Medicilândia. Deixou a consultoria para se dedicar ao negócio e chegou a desenvolver algumas máquinas para adaptar o processo produtivo. “Abri uma loja temática na Estação das Docas de Belém, local turístico onde eu fazia chocolates na frente das pessoas”, conta. “Sempre se teve ideia de que o cacau veio da América Central ou da Europa. Não se falava nada do Brasil e muito menos da Amazônia. Isso me incomodava muito e comecei a repensar o projeto da empresa.”
CASA NA FLORESTA
Em 2012 ele se mudou para Colônia Chicano, comunidade de ribeirinhos e quilombolas que colhem cacau em Santa Bárbara, na região metropolitana de Belém, onde vivem 500 habitantes. “Instalei a fábrica e comprei uma casa, pois queria trabalhar com a comunidade local, entender como vivem.” Dois anos depois ele mudou a razão social da empresa para De Mendes, e passou por um projeto de incubação.
Fez parcerias com vários povos tradicionais da floresta – quilombolas, ribeirinhos e índios yanomami que fornecem o produto e o ajudam a descobrir variedades diferentes do cacau. Ele ensina esses povos a como colher os frutos, abrir as castanhas, fermentar a polpa junto com as sementes, secar as sementes e macerar para obter o pó usado na produção dos chocolates.
“Quem preserva a Amazônia são os povos originários, que conseguem manejar a floresta sem derrubar, usam de forma sensata, sábia e equilibrada.”
“Mantemos uma relação justa de preço e pago em torno de quatro vezes mais que o mercado”, conta o chocolatier, que passou a ser convidado para dar palestras por todo o Brasil e no exterior. Ele também pretende repassar aos fornecedores um porcentual sobre a venda dos chocolates. Com isso, os povos locais conseguem obter renda sem precisar destruir a floresta ou ser cooptado para trabalhar em garimpos.
“Quem preserva a Amazônia são os povos originários, que conseguem manejar a floresta sem derrubar, usam de forma sensata, sábia e equilibrada, e a gente começou a incorporar esses valores na empresa”, afirma o produtor.
Hoje, a De Mendes recebe cacau de 3,5 mil colhedores de várias comunidades, como a do Rio Jari, na divisa entre Pará e Amapá, que leva uma semana para chegar a Belém por barco. Das reservas dos yanomamis o cacau vai de avião de Boa Vista (RR) até Belém, logística que é feita por meio do Instituto Socioambiental (ISA).
ELEGANTE E SOFISTICADO
Os chocolates De Mendes já ganharam prêmios em dois festivais em Paris. A empresa produz nove tipos que recebem nomes das comunidades fornecedoras do cacau. Cada barra de 50g custa R$ 18, com exceção da Yanomami, que custa R$ 50 e teve um lote de mil unidades produzido em plena aldeia e vendido em evento em São Paulo no fim do ano passado. As vendas são feitas apenas via internet pelo site da empresa ou pelo portal Mercado Livre.
Aos 57 anos, Mendes busca parceria comercial e financiamento para ampliar a produção, hoje em torno de 400 quilos ao mês (antes da pandemia eram 600 quilos). “Tenho metas ambiciosas de multiplicar a produção por 5 e, com isso, aumentar a capacidade de compra de cacau e o impacto social e ambiental na região”, afirma. Segundo ele, com esse volume de produção o número de fornecedores poderia chegar a 25 mil pessoas.
Mendes descreve o chocolate como premium pela forma que é trabalhado e pelo valor agregado. A maioria das barras é feita apenas com cacau e rapadura. Pela sua descrição como chocolatier, “o De Mendes é purista, tem notas de amêndoas, cheiro adocicado, é saboroso, elegante e sofisticado”.
Capítulo 4. CAFÉ AGROFLORESTAL DE APUÍ
Nascido em uma família de mineiros que cultivava café, Ronaldo Carlos de Moraes migrou há 12 anos para Apuí (AM), um dos municípios com maior índice de desmatamento na Amazônia, situado à beira da Rodovia Transamazônica. Lá também começou uma roça e plantou o grão no modelo convencional, a pleno sol, mas a produtividade era baixa e a renda familiar sempre tinha de ser complementada com outros trabalhos, como ajudante em outras plantações.
A situação começou a mudar há cerca de oito anos, quando ele alterou o modelo de produção para o sistema sombreado, com café conilon, mais rústico que o tradicional arábica. Para esse cultivo, Moraes teve de plantar também outras árvores, como as de açaí, andiroba e copaíba que, além de fazerem sombra para o café, ajudam a obter renda extra com a venda dos frutos e a extração de óleos.
“Depois dessa mudança melhorou tanta coisa que nem sei por onde começar”, diz Moraes, hoje com 41 anos. Ele relata aumento de 35% a 40% na renda e a melhora na saúde depois que parou de usar agrotóxico na plantação. “Conseguimos melhorar a casa, comprar alguns móveis e eletrodomésticos”, afirma. Ele tem ajuda da mulher, Daguimar, e um pouco das filhas Lorraine, de 13 anos, e Juliana, de 9, quando não estão na escola.
Moraes é um dos 45 produtores de Apuí que participam de um projeto do Instituto de Conservação e Desenvolvimento da Amazônia (Idesam) que introduziu o cultivo de café sombreado no município depois de constatar que o produto se dava bem naquele solo, mas à sombra. Além disso, por se tratar de uma área degradada, a entidade adotou um sistema agroflorestal, que combina o plantio de floresta com a agricultura, ajudando ainda a recuperar o que tinha sido desmatado.
Para iniciar o projeto que incluía preparar a terra, doar insumos, mudas de café e de árvores nativas, além de ajuda técnica sobre plantio, o Idesam conseguiu, em 2012, ajuda do Fundo Vale.
Hoje a região tem mais de 40 hectares de café agroflorestal, com certificação orgânica e está sendo comercializado no Amazonas, em São Paulo, Rio de Janeiro e pelo Mercado Livre com o nome de Café Agroflorestal de Apuí. Um lote para testes foi enviado para uma empresa alemã que já aprovou o produto e, em breve, será iniciada a exportação.
PRODUTIVIDADE MAIOR
“Antes, a produção era de seis a sete sacas de café por hectare, e, depois da introdução de técnicas de agricultura sustentável, plantio de árvores, sombreamento e manejo a média é de 15 sacas por hectare”, informa Pedro Soares, gestor ambiental e gerente do programa de mudanças climáticas do Idesam. “Além do ganho em produtividade, tem o valor agregado, pois agora é um produto de melhor qualidade, com certificação orgânica e preço de mercado maior”, completa ele. “E esse ganho é repassado ao produtor.”
Os agricultores entregam os grãos a um torrefador na própria cidade que se juntou ao grupo e torra, mói e embala o café, que depois é levado para Manaus, de onde é redistribuído para os compradores.
No ano passado os produtores decidiram criar uma startup para migrar o modelo de operação para um negócio que gere renda e receita sem depender apenas de instituições. Nasceu então a Amazônia Agroflorestal, que, formalmente, tem um diretor – o dono da empresa de torrefação –, um único funcionário para cuidar dos contatos comerciais e, informalmente, 45 sócios.
RODADA DE CAPTAÇÃO
O mais importante com a criação da empresa, ressalta Soares, é poder captar investimentos para ampliar o negócio. Estava programada para março a primeira chamada de captação, mas a pandemia da covid-19 atrapalhou, pois era arriscado fazer isso num momento de incerteza econômica. O plano era abrir uma chamada de captação numa plataforma estruturada de “equity crowdfunding”, usada para investimentos de impacto social. “A ideia é retomar o processo no fim do ano ou início de 2021”, informa Soares.
“Antes, a produção era de 6 a 7 sacas de café por hectare. Depois da introdução de técnicas de agricultura sustentável, a média é de 15 sacas por hectare.”
“O grande desafio é como sair desse ambiente de 40 hectares para um ambiente de 200, 250 hectares de Café Apuí, abastecendo centros urbanos e sensibilizando consumidores sobre a importância da história por trás do produto que estão comprando”, diz o gestor ambiental.
Outra fonte de renda para os produtores será a venda de créditos de carbono, pois o cultivo é orgânico, em sistema agroflorestal, dentro de um contexto de recuperação de áreas desmatadas.
Capítulo 5. SABORES DA AMAZÔNIA
Joanna Martins sempre esteve envolvida com os sabores amazônicos, em especial com a culinária paraense, pois passou boa parte da vida vendo a avó, e depois os pais, divulgarem pratos típicos da região em um pequeno restaurante inaugurado em 1972 em Belém (PA), o Lá em Casa.
No fim dos anos 90, quando a gastronomia ganhou importância no País, o pai de Joanna, Paulo Martins – que sempre esteve ao lado de sua mãe no restaurante – passou a ser convidado para dar aulas e fazer jantares, principalmente para chefs de grandes restaurantes, levando esses sabores que, segundo ela, ainda eram desconhecidos no meio.
Inspirado nesse trabalho, Martins criou em 2000 o Festival Ver o Peso da Cozinha Paraense, que foi realizado anualmente em Belém até o ano passado. Com ele, viu aumentar a procura por ingredientes por chefs de cozinha de várias partes do Brasil. “Muitas vezes meu pai pegava o ingrediente, embalava, colocava numa caixa de isopor e despachava no aeroporto”, conta Joanna.
Apesar de seu envolvimento com a comida local, Joanna foi para São Paulo, se formou em Publicidade e depois voltou para Belém. Passou então a “enxergar o potencial amazônico” e abriu uma loja virtual com produtos da região em 2009. O negócio não se sustentou, em parte por causa da dificuldade logística de entregas. Quando o pai adoeceu, ela foi ajudar a mãe no restaurante.
Só em 2014, com o sócio Paulo Reis, decidiu criar uma linha de produtos com marca própria e nasceu a Manioca, com o propósito de desenvolver uma relação com os fornecedores locais e ampliar a base de clientes.
Hoje a startup tem uma linha de produtos naturais (tucupi, farinhas e feijão-manteiguinha), uma de geleias de pimenta-de-cheiro, priprioca e taperebá e outra de temperos (molho de tucupi preto e tucupi temperado), além de doce de cupuaçu e licor de flor de jambu.
Em março foi lançada a granola feita com tapioca, castanha-do-pará, cumaru e cupuaçu. Para os próximos meses está prevista uma linha de temperos secos e, para 2021, uma linha de snacks de produtos como mandioca e castanhas com aromatizantes naturais, sem aditivos.
“Estamos com um projeto de produção de mandioca pelo sistema agroflorestal, o que ajudará o agricultor, pois ele terá mais um produto para colher e vender.”
A startup fornece produtos para a maioria dos grandes restaurantes de comida brasileira de São Paulo e do Rio e tem entre seus clientes o chef Alex Atala, do D.O.M. Seus produtos também estão em redes como Pão de Açúcar e San Marché e lojas de produtos naturais. Tem oito funcionários e vem registrando crescimento de 40% a 60% ao ano. Em 2019 faturou R$ 900 mil.
Os produtos usados pela Manioca são adquiridos de produtores locais que são capacitados pela empresa, como o pessoal da agricultura familiar e extrativistas. “Estamos agora com um projeto de produção de mandioca pelo sistema agroflorestal (que combina o cultivo com o plantio de árvores), algo novo na Amazônia”, informa Joanna.
Segundo ela, o processo tradicional de plantio da mandioca pode ser danoso para o meio ambiente, pois normalmente a área é queimada para preparar o terreno. “No momento estamos avaliando qual cultura vamos plantar com ela, o que ajudará o produtor, pois ele terá mais um produto para colher e vender.”
A Manioca tem parceria com a Universidade Federal Rural da Amazônia e captou R$ 250 mil em recursos de investimentos de impacto em 2019 e neste ano. O foco do aporte é o desenvolvimento dos fornecedores e dos novos produtos. Hoje a startup recebe produtos de mais de 45 famílias que atuam em cooperativas e associações. Eles fornecem 16 itens, como mandioca, polpa de fruta, castanhas, cumaru, farinhas e tucupi.
“Já temos um cliente nos Estados Unidos, para quem fornecemos tucupi e tucupi preto, com envios trimestrais, e a ideia é expandir exportações, mas com calma”, diz Joanna. A empresa tem pronta uma linha de molho de pimenta pensada para o mercado americano, mas, em razão da pandemia o lançamento foi adiado.
Capítulo 6. TECNOLOGIA DE COMBATE AO FOGO
Quando a floresta arde em chamas, líderes de equipes de brigadistas precisam tomar decisões rápidas sobre para que lado vai mandar a equipe e qual estratégia usará para o combate. Disso depende o sucesso da empreitada, a vida dos combatentes e a manutenção de mais um pedaço da biodiversidade amazônica.
“Para tomar a decisão, é preciso ter informações sobre a umidade do ar, a altura e a temperatura das chamas, a velocidade em que se propagam e a velocidade e direção do vento”, explica o professor da Universidade do Estado do Amazonas, Jair Maia. Quanto mais rápido essas informações chegam aos combatentes, mais chance de sucesso tem o procedimento.
6.803
Por isso, Maia e dois de seus alunos – o casal Patrícia, meteorologista, e Guilherme Guimarães, engenheiro de software -, estão desenvolvendo um aparelho com maior índice de nacionalização e de baixo custo. Também estão incluindo um dispositivo para medir quanto gás metano está sendo emitido pela queimada e imagem termal.
“Nosso desafio era que custasse menos de R$ 5 mil, mas, com a alta do dólar, se ficar perto de R$ 9 mil ficarei feliz”, afirma Maia. Ele ainda não conseguiu concluir os três protótipos que estão previstos para testes, porque a pandemia atrasou a entrega de sensores que precisam ser importados porque não há produção local. Além de atrasado, o produto que virá da China ficou mais caro, “porque tudo que vem de lá encareceu depois da covid-19”, justifica o professor, que é biólogo e doutor em ecologia e em ecologia ecossistemas.
“Com os dados obtidos com a ajuda do drone, os brigadistas terão segurança para decidir rapidamente a estratégia do combate.”
O projeto prevê versões portáteis do equipamento que possam ser fixadas em algum local, acoplados a um drone ou carregado nas mãos pelos combatentes. Por exemplo, ele poderá ser colocado em um mastro para obter as informações e repassar os dados para centros de controle e para o celular dos brigadistas. “Com os dados, eles terão segurança para decidir rapidamente a estratégia do combate”, afirma Maia. Para o professor, “o ideal seria que cada brigadista ou bombeiro tivesse um”.
Se provar ser eficaz e tiver preço acessível, o casal Patrícia e Guilherme vai criar uma startup para comercializar o drone, que ainda não tem nome definido. O projeto atualmente recebe recursos captados pelo Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável da Amazônia por meio do Programa de Pesquisa em Biodiversidade (PPBio). Foi o Idesam quem convidou o professor Jair e a Universidade Estadual da Amazônia para o desenvolvimento do projeto.
Capítulo 7. ARTE INDÍGENA
Criada em 2012 por Amanda Santana, a Tucum comercializa artesanato de 30 povos indígenas do Brasil em alguns pontos físicos e principalmente online. No ano passado a startup passou por processo de aceleração e conseguiu captar R$ 360 mil, recurso que está sendo utilizado na mudança do negócio para uma plataforma de marketplace.
Atualmente, boa parte dos produtos comercializados é trazida por seu parceiro, Fernando Niemeyer, cientista social e antropólogo que atua como indigenista desde 2004, e por ela mesma, em viagens que faz às diversas regiões da Amazônia. Com o marketplace as vendas poderão ser feitas diretamente pelos artesãos.
A ideia da startup nasceu com as experiências de Niemeyer que, em suas passagens por aldeias na Amazônia sempre recebia pedidos de indígenas para que levasse seu artesanato para vender no Rio de Janeiro, onde ele e Amanda vivem. Em algumas ocasiões, Amanda viajava com ele e se encantou pelos diversos trabalhos que conheceu das várias etnias, cada uma com suas culturas e tradições.
As peças, inicialmente apenas dos povos kayapó e ticuna, eram vendidas no ateliê de beleza de Amanda, e depois pela internet e lojas parceiras. Ela também exporta peças para lojas e museus da Suíça e Japão.
No ano passado a Tucum – nome de uma palmeira cujas folhas são usadas no artesanato – vendeu R$ 330 mil em cestaria, pulseiras, colares, cerâmicas, redes, instrumentos musicais e telas. Desse valor, 40% voltaram para os artesãos em pagamento pelos produtos.
“Desde que começamos, injetamos mais de R$ 1 milhão em artesanato e este ano, mesmo com a queda do movimento por causa da pandemia, compramos R$ 120 mil em peças”, informa Amanda, que tem 38 anos e é atriz, estudou marketing e tem cursos de cabeleireira e maquiagem feitos nos EUA.
“O artesanato, mais do que gerar renda, garante a manutenção do saber, do conhecimento, pois as peças trazem histórias e mitos dessa população.”
Além de vender as peças, a Tucum presta consultoria às comunidades indígenas em gestão comercial, melhoria de produtos e precificação. A intenção do negócio é também difundir os saberes de dezenas de povos indígenas e mostrar que há várias empresas pequenas trabalhando em prol da Amazônia e da economia local de forma inovadora.
“A geração de renda com seus próprios produtos gera autoestima e autonomia desses povos e mostra ao consumidor que é possível viver da floresta mantendo ela em pé”, diz Amanda. “O artesanato, mais do que gerar renda, garante a manutenção do saber, do conhecimento, pois as peças trazem histórias e mitos dessa população.”
Com o marketplace, os sócios da Tucum querem promover a autonomia dos artesãos. Só as comunidades com as quais eles trabalham têm perto de 3 mil artesãos, sendo 85% mulheres. O projeto, contudo, começa em forma piloto em setembro com três organizações que dão apoio a 31 aldeias de índios kayapó no sul do Pará (onde há 800 artesãos), outra de Rondônia que envolve várias etnias com 400 artesãs e uma terceira com os karajá de Tocantins, onde a cerâmica é reconhecida como patrimônio da humanidade pela Unesco. Um quarto grupo está para ser confirmado.
Com apoio das associações locais que têm computadores e internet, os artesãos terão aulas de capacitação sobre como gerir o negócio, entender como chega o pedido, como embalar para viagem, como enviar, etc. “A ideia era fazer os cursos no campo, mas com a covid tivemos de mudar o formato”, diz Amanda. A Tucum vai fazer a mediação dos negócios e terá comissão de 25% a 40% sobre as vendas.
Após a capacitação, a plataforma entra no ar em outubro. Cada comunidade terá sua página exclusiva, com a capa contando sua história, quem são, de onde vêm, o que significa os desenhos do artesanato, mitos da floresta para “que os consumidores possam se aproximar dessa realidade”, segundo Amanda.
A loja online será mantida até que as demais comunidades tenham estrutura para entrar no marketplace. Em setembro, a Tucum também inicia parceria para venda dos produtos da marca com a Casa Reviva, que em São Paulo têm lojas no bairro Pinheiros e nos shoppings Jardim Sul e VillaLobos, e no Rio de Janeiro, no Shopping Barra.
Capítulo 8. FEIRA ONLINE
Democratizar o acesso e fornecimento de produtos naturais regionais é a proposta da startup Onisafra, idealizada por Macauly Souza de Abreu, de 25 anos, morador de Manaus (AM). Quando criança, no interior, ele acompanhava o trabalho do pai com agricultores e conheceu as dificuldades do setor, em especial o de comercialização e baixo retorno financeiro, situações que continuou vendo ao estudar em colégio agrícola e ao cursar a faculdade de engenharia agrônoma.
Há três anos, ao presenciar os problemas de um amigo que cultiva bananas, teve a ideia de criar uma solução para a venda no segmento agrícola e se juntou a três sócios, entre eles Daniel Bandeira, e nasceu a Onisafra. Após estudos de viabilidade e implantação de sistemas, a plataforma iniciou operações no ano passado. Ela atua com rastreabilidade, comercialização e distribuição de alimentos produzidos por agricultores da região e alguns empreendimentos urbanos que trabalham com hortifrútis.
“A vantagem para o agricultor é que ele já vem para a cidade com uma garantia mínima de produtos vendidos e certeza de que vai receber o valor das vendas.”
“Nós criamos feiras digitais online”, afirma Abreu. Como os agricultores normalmente só vão ao centro de Manaus para a feira uma vez por semana, os consumidores fazem a encomenda online, que é enviada aos produtores um dia antes e eles trazem os produtos. “A vantagem é que eles já vêm para a cidade com uma garantia mínima de produtos vendidos e certeza de que vão receber o valor”, diz. Além disso, podem colher apenas os produtos já vendidos e evitar desperdícios.
Os produtos são entregues na casa do consumidor pela equipe da empresa, que tem dez pessoas nas operações. O consumidor, além da comodidade de não sair de casa, adquire produtos naturais de qualidade e sabe sua origem, até mesmo quem é o produtor. Neste ano, até julho, a Onisafra transacionou cerca de R$ 100 mil para as dez famílias de pequenos agricultores que fazem parte da plataforma.
A venda envolve produtos regionais como açaí, tucumã, goma de tapioca e hortifrútis em geral, eventualmente tem queijos, geleias e plantas comestíveis não convencionais. A startup recebe em média 15% sobre o valor vendido.
“A Onisafra traz diversos benefícios para os agricultores, desde o acesso a novos canais de comercialização, o que gera incremento em sua renda, até receber um preço justo pelos produtos”, relata Bandeira. “Esses benefícios são estendidos do agricultor ao consumidor, pois todos fazem parte desse projeto que visa democratizar o acesso e fornecimento de alimentos.”
Para voltar ao mercado de São Paulo, a Onisafra criou o Clube Amazônia, em que o interessado faz uma assinatura e todo mês recebe uma “caixa surpresa” com produtos regionais, feitos por fornecedores locais que usam apenas matéria-prima natural. “Teremos uma página específica na plataforma, em parceria com a empresa Amazônia Hub, para esse clube e ela entrará no ar até outubro”, informa Abreu.
Antes, a plataforma atuava na capital paulista com um parceiro que comprava e vendia produtos avulsos, como geleias de frutos da Amazônia, chocolates de cacau silvestre e farinha, mas, desde o início da pandemia, o negócio está suspenso.
“Para mim, esse é um projeto de vida. Abri mão de trabalhar para outras empresas e receber salários melhores para focar na Onisafra porque é algo em que eu acredito”, diz Abreu.
Por Cleide Silva e Giovana Girardi
Fonte O Estado de S.Paulo