Após 15 anos, mulheres continuam sendo minoria nos cursos universitários de ciência

As mulheres representam 60% das pessoas que concluíram cursos superiores no Brasil em 2015, de acordo com o Censo da Educação Superior. No entanto, quando são considerados apenas os cursos relacionados às ciências (biologia, farmácia, engenharias, matemática, medicina, física, química, ciência da computação, entre outros), a participação feminina cai para 41% – índice que não registra aumento desde 2000.

Considerando isoladamente os cursos de engenharia, o desequilíbrio entre homens e mulheres é ainda maior: dos 81.194 estudantes que se formaram em 2015 no país, 29,3% são do sexo feminino e 70,7%, do masculino. Nesse segmento, apesar da desproporção, houve avanço nos últimos anos: em 2000, as meninas representavam 22,1% dos concluintes de engenharia.

O G1 entrevistou adolescentes e mulheres que já esbarraram em questões de preconceito de gênero por terem relação com a ciência. Especialistas também comentam as razões de ainda existir desigualdade de oportunidades.

Desde a infância
Marcia Barbosa, professora titular da UFRGS e diretora da Academia Brasileira de Ciência, afirma que a forma como as meninas são educadas na infância pode influenciar na escolha da profissão que seguirão na vida adulta. “Nós formamos as garotas para serem princesinhas, mas uma cientista tem que ser o oposto disso: precisa sujar o vestido”, diz. “O contato com o mundo natural não é isento de risco nem ‘limpinho’. Precisamos eliminar o ‘princesismo’ que assola a humanidade”.

Ela usa o termo “vírus pink” (rosa, em inglês) para explicar que, ao instituir que as meninas devem ficar apenas sentadas e arrumadas, os pais deixam de incentivá-las a explorar o universo. Os garotos, por outro lado, costumam ser associados a atividades como correr e brincar em árvores e em terra.

Para a psicóloga Rita Calegari, as famílias e os professores não devem especificar o que é “brincadeira de menino” e o que é “brincadeira de menina”. “Estimulem a garota a várias possibilidades lúdicas: carrinho, futebol, montar pecinhas. Por que sempre o pai só convida o filho menino para acompanhá-lo ao posto de gasolina ou ao estádio?”, questiona a especialista.

“Pode ser que a criança não goste. Mas se não houver um convite ou um incentivo a participar de outras atividades, como um museu de ciência ou uma exposição de carros antigos, as meninas vão deixar de descobrir possíveis talentos e
preferências.”

Brincadeira de menino, profissão de menino

Na adolescência, as mulheres continuam enfrentando os rótulos: as “brincadeiras de menino” viram “profissões de menino”. Thalita Pinheiro, de 17 anos, é estudante de escola pública em São Paulo e quer cursar engenharia civil – mas sua família crê que ela deveria seguir a carreira de pedagoga. “A gente aprende a ser dona de casa, não a construir a casa.

Foi difícil discordar dos meus pais, mas desde que conheci laboratórios, tive a certeza de que era ali onde eu queria estar”, afirma a menina.

Ela faz um curso de desenho online e, três vezes por semana, tem aulas de edificações em uma escola técnica. Para enfrentar o preconceito, Thalita conta com o apoio do professor de matemática. “Ele procura cursos para mim e me mostra que é possível. Eu não ouvi de ninguém que engenharia poderia ser para mulher também – e isso me fez falta. Meu colega diz que sou frágil, que não vou me adaptar. Mas sei que tenho capacidade”, diz.

A escola e a família são elementos importantes para incentivar as meninas a entenderem que podem seguir qualquer carreira – inclusive as de ciência. Jamile Falcão, de Fortaleza (CE), teve o apoio de ambas para ser a única menina medalhista de ouro na Olimpíada Brasileira de Matemática (OBM) 2016, aos 14 anos. Ao todo, foram distribuídas 22 medalhas de ouro naquela edição da OBM.

Ela conta que tinha dificuldade em entender os enunciados dos problemas matemáticos, mas recebeu ajuda da irmã mais velha e “as coisas começaram a fazer mais sentido”. “Queria participar de olimpíada, mas minha escola em Pacaju (interior do Ceará) não demonstrou interesse em me apoiar. Então fui morar com as minhas irmãs em Fortaleza e a escola nova fez toda a diferença. Os professores tiram dúvidas e não cultivam diferença de gêneros”, conta.

Jamile ainda não sabe se quer seguir a carreira de engenharia ou de medicina – mas diz já perceber que enfrentará preconceito. “Tento ignorar e caminhar para frente. A sociedade ainda tem esse comportamento de dizer que só garoto consegue as coisas, como se ser menina fosse alguma limitação. Tive a sorte de crescer em uma família que não cultivou isso. Nem todas as minhas amigas têm essa liberdade”, completa.

Sobreviventes

Aquelas mulheres que conseguiram concluir o curso e se consolidar na carreira tentam mostrar às meninas mais novas que é possível ser cientista. Aos 33 anos, Elisa Orth é um exemplo: ela ganhou o prêmio Rising Talents, da L´Óreal-Unesco, que reconhece jovens pesquisadoras em ascensão no mundo inteiro. Ela trabalha na UFPR, com o foco de encontrar alternativas para combater o excesso de pesticida que é usado nos alimentos, já que o Brasil é o maior consumidor de agrotóxicos do mundo.

“Acho que nós, cientistas, temos que nos mobilizar para estimular as crianças, porque é nessa fase que podemos despertar o verdadeiro interesse delas. Aqui no departamento de química da UFPR, recebemos crianças de vários colégios para apresentarmos a rotina dos laboratórios. Elas ficam fascinadas”, conta.

Elisa expressa que ainda existe um estranhamento dos homens ao verem mulheres que tiram boas notas, têm colocações de destaque em concursos públicos ou seguem carreiras de sucesso. “Acho que ainda tem muito a imagem de cientista maluco na figura de um homem de cabelo arrepiado. As crianças precisam crescer acostumadas a verem mulheres fazendo ciência também”, diz.

A pesquisadora conta que tem a carreira que sempre sonhou e que isso lhe dá perseverança para continuar. No entanto, a situação de Elisa é incomum: existe o fenômeno chamado “cano com goteira” ou “efeito tesoura” entre as mulheres que buscam avançar na ciência – conforme as etapas de ensino são percorridas, a porcentagem de indivíduos do sexo feminino diminui. (gráfico abaixo)
Efeito tesoura: participação das mulheres decai com o decorrer da carreira (Foto: Arte/G1)

Uma das razões que continua fazendo com que menos mulheres cheguem ao doutorado é a maternidade. “É algo cultural, não biológico. Há uma pressão de que a família ficará abandonada se a mulher não estiver presente no lar”, explica a professora Marcia Barbosa.

Ela menciona que ocorreu um avanço no Brasil para tentar conter o efeito de abandono dos estudos: desde 2010, as mulheres que fazem pós-graduação com bolsa concedida pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) têm direito à licença-maternidade de até quatro meses, desde que o parto ocorra durante a vigência do programa.

O preconceito que existe com mulheres que querem seguir a carreira de pesquisa em ciência é chamado de “bullying social” pela professora Marcia, após os estudos sobre gênero que realizou. “As meninas que conseguem chegar à universidade já são sobreviventes”, afirma.

Samira Saab estudou em escola estadual e foi aprovada na UFABC, onde pretende cursar neurociência, física ou engenharia aeroespecial (nessa universidade, a escolha da carreira é feita após o ciclo básico, no meio do curso). Aos 18 anos, ela já sente a pressão de querer sempre estudar: desde a infância, carrega livros para todo lado.

Fez intercâmbio no Japão, por um programa do governo, e aprendeu a falar japonês; estudou chinês e, atualmente, começa um curso de árabe. “Quero estudar sempre, meu berço é de humanas, mas o que me alimenta a alma é a ciência. Quando falo isso, as pessoas apontam o dedo e dizem que sou mulher, que preciso cuidar de casa, criar filho, que vai ser impossível conciliar tudo. A gente tem que ser livre para escolher, mas dizem que não vou conseguir, que preciso cuidar do casamento em vez de um doutorado”, lamenta.
O ITA é um dos principais institutos de formação na ciência no Brasil (Foto: Arte/G1)


A pesquisadora Fernanda Werneck, premiada no programa “Mulheres na Ciência” em 2016, enfrentou o desafio de administrar a família sem abandonar a carreira. Ela é bióloga e estuda os efeitos das mudanças climáticas na biodiversidade da Amazônia e do Cerrado. Sua filha, Lara, de 11 anos, nasceu enquanto Fernanda e o marido faziam mestrado. “Costumamos brincar que ela já fez a pós-graduação conosco. Encarou cinco anos puxados quando fazíamos doutorado no exterior e passou por muitas mudanças e viagens ao longo do caminho”, diz.

“Conciliar trabalho de campo (na Amazônia) e maternidade pode ser um pouco desafiador. Felizmente me acostumei porque tenho uma família muito solidária e um marido que também é cientista. Mas sacrifícios precisam ser feitos. Espero que com o tempo e com a experiência, eu consiga encontrar um bom equilíbrio entre a vida e a pesquisa”, conta.
Fernanda lista as dificuldades que as mulheres enfrentam para alcançar uma carreira de sucesso na ciência: benefícios e direitos desiguais no emprego, oferta desigual de oportunidades, preconceito de gênero, discriminação e julgamento com base na aparência, acesso mais difícil às fontes de financiamento. A biologia é um campo com pouca disparidade nas universidades no número de alunos homens e mulheres, mas um levantamento da revista Nature mostra que o sexo feminino ocupa uma quantidade significativamente menor de cargos efetivos na carreira do que os colegas homens.
Intelectualmente inferiores?
Outro aspecto cultural que interfere na luta das mulheres para seguir a carreira na área de ciência é a crença de que elas são “intelectualmente inferiores” aos homens. Esta mentalidade aparece desde cedo: Gabriela Fleury, de 19 anos, foi aprovada em engenharia civil, costeira e portuária, na Universidade Federal do Rio Grande (Furg), no Rio Grande do Sul.
Ela havia estudado em uma Etec, no curso de edificações, e passou por situações de constrangimento. “Um menino copiou o meu trabalho e o professor disse que foi o contrário, que eu que tinha copiado. Falou que eu não teria capacidade para fazer sozinha, deu nota máxima para o garoto e zero para mim”, diz. “Em outros trabalhos, não deixavam que as meninas cortassem madeira, achavam que era carreira para homem, porque mulher é sensível”, conta.

Segundo Gabriela, ela também ouviu de um menino com quem se relacionava: “você precisa fazer academia, porque engenheiro só contrata ‘gostosa’”. Já temendo o preconceito que sofreria no ensino superior, a jovem não quis prestar vestibular para cursar engenharia na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP). Na Fuvest 2016, 73,9% dos candidatos pda Poli eram homens e 26,1%, mulheres. “É uma luta diária. Já luto contra o mundo e ouvi histórias horríveis de lá. As meninas que ficam na Poli são guerreiras”, diz.

Uma delas é Aline de Souza, que faz engenharia mecânica na USP – segundo ela, o curso de engenharia com menos mulheres na universidade paulistana. Ela administra a página no Facebook chamada “Politécnicas R.existem”, projeto que recebe relatos de alunas que passaram por situações de humilhação pelo machismo de professores e de colegas.
A identidade das vítimas é mantida sob sigilo. “Alguns nos ignoram, outros chamam a menina com roupa mais curta para apresentar o trabalho. Perguntamos algo e os professores fazem questão de mostrar que nossa dúvida é muito básica. Tenho amigas que tiveram dificuldade para conseguir orientador no TCC, já que não temos professora mulher”, conta.

Soluções
As mulheres entrevistadas pelo G1 apresentam propostas para tentar combater o machismo e incentivar meninas a seguir as carreiras de ciência. Marcia Barbosa reforça a importância de haver ações afirmativas que estimulem a contração de pessoas do sexo feminino. “É um assunto que precisa ser discutido. O Brasil tende a achar que é uma questão resolvida, mas estamos longe disso”, diz.

Para ela, além da descoberta de outros talentos, a entrada de mais mulheres na ciência pode contribuir para que as equipes tenham pessoas com diferentes bagagens culturais e maneiras de olhar o mundo. “Há uma necessidade de maior diversidade”, afirma Marcia.
A professora também ressalta a importância de todas as mídias divulgarem as conquistas das mulheres – seja em descobertas, em olimpíadas ou em cargos de relevância. “Elas vão ver, por exemplo, que uma garota abriu uma startup de sucesso e pensarão: por que não posso também?”, afirma.
Filmes recentes contribuem para o debate: “Estrelas Além do Tempo” mostra a trajetória das matemáticas Katherine Johnson, Dorothy Vaughan e Mary Jackson, mulheres negras que enfrentaram o preconceito e contribuíram para os avanços da Nasa na corrida espacial. Outro exemplo é o longa “Moana: Um Mar de Aventuras”, que mostra a coragem e o impulso de uma garota em desbravar o oceano.

Rita Calegari menciona a importância de sempre manter portas abertas: desde a infância, estimular que conheçam diferentes tipos de atividade. Ela sugere também que as escolas sempre apresentem as biografias de grandes mulheres cientistas, importantes na história. “Quando vemos mulheres empoderadas, damos o exemplo para as crianças”, diz.
As próprias alunas concordam. Renata Nascimento, de 13 anos, ganhou duas medalhas de ouro na Olimpíada de Matemática das Escolas Públicas (Obmep). “Desde cedo, todo mundo precisa ser incentivado a gostar de qualquer coisa.” Samira complementa: “Mais exemplos encorajariam a gente”, conta Samira. “Nos meus onze anos de escola estadual, vi muita gente desistindo pelo caminho. Então incentivo todo mundo.”

Autor: G1