BNDES e o déficit de mobilidade urbana no Brasil: algumas considerações

O periódico “BNDES Setorial”publicou, no seu número 41, o trabalho “Demanda por investimentos em mobilidade urbana no Brasil” (pp79-134). Nele foi proposta e aplicada uma metodologia para estimativa do déficit de infraestrutura de transporte público de alta e média capacidade. 

Focando o problema da mobilidade nas regiões metropolitanas, o estudo quantificou a necessidade de infraestrutura de mobilidade a partir das relações entre os modos urbanos de transporte coletivo e adensamento, capacidade e alcance (distância percorrida), pelo caminho da “densidade populacional, um indicador que sintetiza duas informações: população e área territorial” (distância / alcance de um modo de transporte). 

A metodologia aplicada às quinze regiões metropolitanas brasileiras apontou um déficit de 1.633 km de infraestrutura de transporte coletivo. Esta infraestrutura demandaria recursos da ordem de R$ 234,7 bilhões, sendo 90 % destinados para os modos sobre trilhos (metrôs, trens, monotrilhos e VLTs). O trabalho dedica um esforço específico para construir uma agenda que viabilize estes investimentos em mobilidade urbana. 

Em que pesem os aspectos positivos, como o rigor no tratamento dos dados e a busca pela quantificação e viabilização de recursos necessários para a solução do problema da mobilidade urbana, há dois pontos que merecem uma observação mais detalhada. 

A primeira observação é de natureza conceitual. A chave da mobilidade não é o transporte, mas a acessibilidade. O foco na acessibilidade define o tratamento da mobilidade através da avaliação conjunta da morfologia urbana e dos sistemas de transporte, com especial atenção a explorar o potencial da combinação entre morfologia, densidade e do uso do solo como indutores da proximidade entre origens e destinos. 

Combinar assentamentos urbanos de alta densidade com o uso de solo misto não apenas reduz a intensidade dos grandes viagens como acentua as economias de aglomeração e estimula deslocamentos não motorizados, pressupostos da mobilidade sustentável. Neste contexto, o transporte continua a desempenhar um papel de importância, mas não mais de protagonismo.
Nesta abordagem os sistemas de transporte público, em especial os de alta capacidade, tem a função estratégica de prover mobilidade a maiores distâncias operando uma rede multimodal de integração. 

Aqui reside a primeira observação sobre o estudo – a abordagem da mobilidade pelo transporte introduz um viés que: (1) leva a um comprometimento questionável de recursos públicos (em particular em cenários onde o estado não tem a necessária credibilidade junto aos empreendedores privados, inibindo o emprego de mecanismos como as concessões); (2) sobrevalorizam a infraestrutura viária, o que em muitos casos opera como alavanca da motorização, com suas externalidadesnegativas e o distanciamento das condições de sustentabilidade; e (3)pelo autocentrismo do planejamento de transportes, leva a uma distorção na morfologia urbana, com efeitos negativos em todo o desenvolvimento das cidades. 

A segunda observação diz respeito à forma pela qual se mediu o déficit de mobilidade.Entendo, até como decorrência da primeira observação, que a métrica proposta não é a ideal. Qual seria, então, a alternativa para se mensurar o déficit de mobilidade? 

Para construir este indicador penso ser importante partir da concepção mais usual da mobilidade – a capacidade de prover deslocamentos, independentemente de sua forma (motorizados ou não). Um deslocamento qualquer tem de atender a três condicionantes: (1) espaço (chegada ao destino pretendido pelo cliente); (2) tempo (chegada ao destino no horário desejado ou necessário); e (3) estado (chegada em segurança, deslocamento seguro e com conforto). O não atendimento, integral ou não, de pelo menos uma destas condicionantes implica em perda de mobilidade. 

E esta perda pode ser percebida através das externalidades negativas da mobilidade: congestionamentos, acidentes e poluição. Quanto maiores as externalidades – grandes congestionamentos, significativo número de acidentes e poluição atmosférica elevada, maior a carência de um sistema que permita deslocamentos através de infraestruturas e serviços com duração adequada, segurança e menor impacto ambiental. 

Diversas fontes podem ser citadas como referência para mensuração e precificação das externalidades negativas. Entre os trabalhos recentes considero o de Marcelo Maciel (“Externalidades negativas do transporte motorizado individual em zonas urbanas do Brasil: uma análise do potencial de economia de recursos para 2020”, tese de doutorado, COPPE, 2012) um dos mais abrangentes e robustos. 

Aparentemente o uso das externalidades como métrica para a carência de mobilidade teria uma limitação: como “traduzir” o déficit – de unidades monetárias (resultado da precificação dos congestionamentos, acidentes e poluição) para quilômetros de infraestrutura? 

Esta é, como colocado, uma aparente restrição, pois a mobilidade não se mede pelo tamanho da infraestrutura. Dado que a chave da mobilidade é a acessibilidade, a cidade ideal em termos de mobilidade sustentável se caracterizaria por uma infraestrutura predominantemente voltada aos deslocamentos não motorizados, e teria uma infraestrutura de transportes de grande capacidade menor (em relação ànão motorizada), pela proximidade de origens e destinos proporcionada por uma acessibilidade efetiva. 

A medida de déficit proposta pode ser usada para avaliar a evolução ou o agravamento das condições de mobilidade em determinada cidade ou região metropolitana ao longo do tempo, ou para estabelecer uma escala de prioridades em termos de intervenções públicas, mas não para definir qual modo de transporte deva ser implantado e em qual extensão.
Isto porque soluções de transporte não são soluções de mobilidade (mas parte delas). Soluções de mobilidade devem ser integradas – englobam uso do solo (define o padrão dos deslocamentos), trânsito (volume dos deslocamentos) e transporte (forma pela qual os deslocamentos se efetivam). Abordar a questão apenas pelo lado do transporte(ou por qualquer outra forma que não a integrada) é distanciamento certo dos princípios da sustentabilidade urbana.