Um passeio de motocicleta…por quatro décadas

Sou motociclista há quase quarenta anos, e valho-me de uma motocicleta para os deslocamentos diários, urbanos e interurbanos. Nestas quatro décadas, tive a oportunidade de observar, montado em motocicletas, a profunda transformação social do país: da paixão de uns poucos à brutal massificação como meio de transporte. 

Na década de 1.970, adolescente, trocava com meu amigo Eduardo a prestação de meus serviços como mecânico de sua bicicleta a motor, uma austríaca Puch, por passeios. Ainda que não fosse tecnicamente uma motocicleta, aquela neanderthal das motos proporcionava ao então iniciante motociclista, aventuras que seriam inesquecíveis. Naqueles dias de poucos aficionados, éramos alvo de olhares desconfiados, da imensa brutalidade dos motoristas de táxi e, do combustível baixa qualidade: motos equipadas com motores de dois tempos forçavam seus pilotos a parar nas ruas e avenidas de São Paulo, para enxugar a vela do cilindro encharcada de óleo. Invariavelmente, a cortesia de algum irmão de duas rodas, fosse uma valente cinquentinha (50 cc.) ou uma glamorosa sete-galo (750 cc.), se fazia manifestar e resolvia-se o problema. 

Aos dezoito anos, habilitação na mão e economia das mesadas por vários anos, comprei minha primeira moto escondido de meus pais: uma Yamaha 100 cc. Depois, seguiram inúmeras outras paixões, já então com o conhecimento familiar, embora sem o consentimento: diversas “japas” Honda, Kawasaki, Yamaha e Suzuki, sempre velozes e confiáveis; a germânica BMW, infatigável trituradora de estradas; a revolucionária americana da Buell; e, as velocíssimas italianas Ducati .
Até meados da década de 1.980, as motos de grande cilindrada tinham motores de 750cc., e podiam alcançar a velocidade máxima de 200 km/h. Os motores de média cilindrada tinham capacidade de 350 cc., e as pequenas, de 50 cc., com alguns modelos de 125 cc. 

Fazendo um resumo de minhas quatro décadas como motociclista, noto que comecei andando de moto quando a concepção mecânica vigente tinha a seguinte configuração: freios de tipo tambor, pneu com câmara de tiras diagonais e motor de dois tempos. Hoje os freios são a disco na duas rodas e controlados por ABS, o motor de dois tempos foi proibido por sanidade ambiental, e as motos de melhor performance são equipadas com sistemas de controle de tração, havendo já umas poucas com câmbio automático. Os pneus? Radiais sem câmara, com banda de rodagem mista: borracha dura no centro e, borracha macia nas bordas, especialmente calibradas para a emoção das curvas velozes. Houve, portanto, uma transformação sutil, mas muito radical, de incremento da performance na pilotagem da motocicleta. Esta evolução permite que as motos acelerem de 0 a 100 km/h em menos de 3 segundos, velocidade final acima de 320 km/h e, importantíssimo, curvas muito mais rápidas. Suspensão invertida, motores e quadros (chassis) de alumínio, e muita eletrônica embarcada colocou as motos de grande cilindrada, no patamar antes impensável de motorização de 1.300 cc. a 1.800 cc., que produzem 170 hp. Os motores de média cilindrada acompanharam a elevação e situam-se em torno de 900/1.000 cc., enquanto que as motos de pequeno porte mantém-se entre 150/350 cc., embora ainda persistam alguns modelos de 125 cc. por mera economia dos fabricantes. 

Atualmente, percorro em média cerca de 100 quilômetros diariamente pela Grande São Paulo, o que é impensável de ser cumprido se feito de automóvel. Embora ainda seja um entusiasta, confesso que já não há tanto prazer, face à brutal concentração exigida ao motociclista para se manter íntegro em meio às condições do trânsito. A ferocidade com que os motoristas e motociclistas dirigem seus veículos se aproxima da barbárie. 

O gradual crescimento da agressividade no trânsito, observo há vários anos, acompanha o incremento exponencial no número de motocicletas circulando pelas cidades, agora não mais por aqueles “apaixonados”, como havia nos anos 1.970/1.980, mas sim, às moças e rapazes que se cansaram de passar horas parados no trânsito a cada deslocamento. E que, por conta da falta de habilidade e conhecimento do veículo, formam o contingente mais numeroso das vitimas dos acidentes. Percebo que parte considerável dos acidentes ocorrem, invariavelmente, pela utilização de motos muito rápidas, ou então, pela equivocada suposição de que moto de pequeno porte não oferece qualquer perigo. A outra parcela dos acidentes decorre da falta de atualização dos conceitos de engenharia de tráfego específicos para motocicletas. 

Assim, a título de colaboração, destaco a seguir algumas observações que poderiam reduzir os acidentes, fruto de minhas experiências com o uso de motocicleta em meio ao trânsito:
a) há um sem número de medidas bem intencionadas, mas que se revelam sem sentido. Destacam-se algumas: 

I) obrigatoriedade de uso de coletes reflexivos por moto-fretistas: há algum levantamento fidedigno apontando qual o percentual de acidentes com motociclistas que ocorrem à noite? Não seria mais razoável obrigar (há leis para tal) as motos a utilizarem faróis e luzes de sinalização? 

II) obrigatoriedade de uso de capacetes com selos de qualidade do Inmetro: seria uma medida adequada, caso fossem também aceitos os certificados de qualidade da Comunidade Européia, Japão e Estados Unidos, que não são válidos no Brasil. O motociclista deve portar um capacete, mesmo que qualidade inferior mas certificado pelo Inmetro, enquanto mantém seu magnífico e seguro Shoei ou AGV no armário. 

III) obrigatoriedade de uso, por moto-fretistas, de “antenas” contra pipas com fio serol: as pipas com fio serol são utilizadas exclusivamente na periferia de São Paulo. Ou alguém já observou garotos empinando pipas nas avenidas Rebouças, Faria Lima ou Pacaembu? 

b) como se percebe acima, medidas legais e administrativas relativas à circulação de motocicletas deveriam ser projetadas por engenheiros motociclistas, ou seja, por quem detém o conhecimento técnico e prático, que sabe como se comporta uma motocicleta nas ruas e, em especial, que há uma ampla gama de motocicletas, a qual não se exaure nos (pequenos) modelos de 125 cc. Por exemplo, nos manuais técnicos, a moto trafega sempre pelo meio da faixa de rolamento, enquanto que, na prática, o meio da faixa de rolamento é o local a ser evitado, por ser o mais sujo da pista, em especial por derrames de óleo Diesel que vaza dos tanques dos ônibus e dos caminhões. 

c) estes derrames de óleos deveriam ser objeto de rígida fiscalização, pois o desleixo do derrame na pista pode matar – e não apenas motociclistas. As vias que contemplam curvas de acesso ou saída às vias de tráfego de ônibus e caminhões, como por exemplo, o acesso às pontes partindo das vias marginais paulistanas, são especialmente pródigas em proporcionar acidentes por conta do óleo na pista. 

d) nas rodovias federais, em que motocicletas pagam pedágio, TODAS apresentam graves riscos de queda do motociclista nas cabines de pagamento, pela presença de óleo Diesel e óleo lubrificante na faixa de rolamento. Curiosamente, a administração da rodovia, que deveria zelar pela segurança da pista, permite a manutenção da condição de risco na própria cabine de pagamento, talvez pelo “serviço” prestado; 

e) em algumas rodovias paulistas, operadas por concessionárias de prestação de serviço público, as motocicletas não pagam pedágio por força da legislação paulista. Assim, a passagem livre das motocicletas se dá por uma faixa exclusiva localizada no centro da fileira de cabines de pagamento, mantendo-se os sistemas de cobrança automático nas faixas da direita. A condição mais usual e mais segura tanto ao motociclista quanto aos demais usuários, é a faixa exclusiva para motocicletas ser posicionada junto à extrema direita. A configuração central é um grave risco à segurança dos usuários pela corriqueira e súbita alteração de rota por motoristas de automóveis, em busca de cabines de pagamento com menores filas, como ocorre, por exemplo, na SP-280/BR-374; 

f) a implantação de faixas exclusivas para motos nas grandes avenidas paulistanas, como nas avenidas Sumaré, Liberdade e Rua Vergueiro, deveria ser revista. Obriga-se os motociclistas a trafegarem num diminuto espaço (considerando-se uma moto de porte médio e grande), e que se destaca por ser a parte da pista que mais acumula sujidades, junto ao meio-fio. Também há o risco de atropelamento proporcionado por pedestres que se posicionam na extremidade da calçada, ou que por desatenção, avançam sobre a faixa enquanto os automóveis estão parados. As motos não estão. É muito mais razoável e seguro permitir o uso dos corredores de ônibus pelas motos, que ao contrario dos táxis, não causam lentidão nos corredores e na via paralela; 

g) imperfeições na faixa de rolamento (crateras e “panelas” causadas pela infiltração de água), ainda que não sejam riscos exclusivos às motocicletas, formam as condições de insegurança ideais para um tombo motociclístico, que pode ser seguido por atropelamento do motociclista. Causa espécie que, com a capacidade técnica da engenharia nacional, a sociedade ainda permita às municipalidades desperdiçarem recursos com operações “tapa-buraco” que sequer resistem no período de seca.. Quanto menos, em dias de chuva; 

h) a implantação de sinalização horizontal deve obedecer aos nobres critérios da segurança – também para motocicletas. A tinta das faixas, que já é suficientemente escorregadia em tempo seco, torna-se como gelo em dias de chuva. As tintas deveriam proporcionar um coeficiente de atrito compatível com o uso por motocicletas, mesmo quando umedecidas. A questão do atrito não é considerada
nas normas técnicas do DNIT e congêneres. 

i) ainda sobre a sinalização horizontal: tartarugas, tachas, tachões, segredadores, bate-rodas e prismas de concreto, são obstáculos às rodas das motos, e se tornam catapultas de motociclistas. Não há motivo para não ordenar o trânsito com artefatos de pequena espessura; 

j) em túneis, a exaustão da atmosfera interna é feita sem considerar quem usa capacete: o barulho é ensurdecedor (moto não tem janela), e a circulação do ar sem que se agregue ar fresco, embaça por completo – e subitamente – a viseira dos capacetes. Uma situação de alto risco em dias de chuva; 

k) há leis que impedem a alteração das características técnicas do veículos. Ainda assim, a imensa maioria dos moto-fretistas paulistanos, fecha o ângulo do guidão da moto para passar sem obstruções no “corredor”, alterando-se a ciclística do veículo, e sem qualquer restrição por parte das autoridades;
l) há casacos para motociclistas equipados com “air-bag”. Por serem importados, a alíquota aplicada é aquela para vestuário de luxo. É razoável?

Tais recomendações são simples, e não requerem grandes investimentos ou modificações, mas salvariam algumas vidas.. e evitariam muitas longas recuperações nos hospitais. Como última observação, a prática (mortal) de motoristas enviarem ou lerem mensagens de texto pelo celular enquanto dirigem seus carros deveria ser uma penalidade extrema, com suspensão da habilitação.