O sonho, os feitos e a derrocada do tanque brasileiro

Nosso post sobre o primeiro tanque de guerra a entrar em combate gerou alguns comentários a respeito do Engesa EE-T1 Osório, um dos mais modernos veículos militares do mundo nos anos 80, e que muitos acreditam ter sido vítima de sabotagem política por parte dos EUA. O que há de verdade nisso?

Desde o final da década de 70, a Engesa (Engenheiros Especializados S/A) começou a se destacar como uma importante fabricante de veículos blindados sobre rodas. O carro de combate leve e reconhecimento EE-9 Cascavel e o transporte de tropas EE-11 Urutu fizeram bastante sucesso, cada um deles com mais de 1,5 mil unidades fabricadas para dezenas de forças armadas na América Latina, na África e no Oriente Médio.

O Golfo Pérsico em particular se mostrava um dos mais generosos mercados para a emergente indústria bélica brasileira – o Iraque por exemplo, além de adquirir treinadores Embraer Tucano, empregaria o Cascavel e os lançadores de foguetes Astros tanto no conflito contra o Irã quanto na guerra contra a coalizão formada após a invasão do Kuwait, com bons resultados.

Junto com o Irã e o Iraque, o principal comprador de armas naquela região era a Arábia Saudita. No começo da década de 80, este país iniciou estudos para adquirir uma nova força de Main Battle Tanks (MBT), veículos sobre lagartas com peso entre 40 e 60 toneladas armados com canhões de 105 a 120 mm e ampla blindagem – para efeito de comparação, o Cascavel pesa apenas 11 toneladas, porta um canhão de 90 mm e possui blindagem bem leve, além de ser movido por rodas, menos efetivas em terrenos off-road.

[E aqui vale uma explicação para boa parte da imprensa brasileira: tanques são veículos sobre lagartas feitos basicamente para caçar e destruir outros tanques. Viaturas sobre rodas, canhões autopropulsados e transportes de tropa não são tanques, são apenas blindados]

Mesmo sem experiência prévia no desenvolvimento de MBTs, a Engesa resolveu aceitar o desafio de disputar o bilionário contrato saudita. A concorrência era mais que pesada: Estados Unidos (M1 Abrams), França (AMX-40) e Inglaterra (Challenger), nada menos que a elite dos blindados ocidentais na época – só faltou a Alemanha, cujo Leopard 2 acabou vetado por razões políticas.

Contra eles, o EE-T1 Osório – homenagem ao marechal Manoel Luis Osório, patrono da Cavalaria do Exército Brasileiro – já saía em desvantagem num dado de extrema importância: a falta de encomendas por parte das forças armadas do seu próprio país.

Apesar de todo o apoio técnico e operacional dado pelo Exército (engenheiros militares participaram ativamente do projeto, e todos os testes de validação foram conduzidos por oficiais em campos de prova da corporação), o planejamento militar brasileiro na década de 80 não incluía – e nem suportava financeiramente – a compra de tanques com as dimensões, o peso e as capacidades do Osório.

Mesmo assim, o resultado final surpreendeu o mundo. Com investimento próprio e partindo do zero, a Engesa criou um MBT de acordo com as principais tendências da época: perfil baixo, blindagem composta de metal-cerâmica e suspensão hidropneumática. O peso atingiu as 41 toneladas, bem abaixo dos seus concorrentes. O motor escolhido foi um MWM V12 a diesel com 1.014 hp (1.028 cv) de potência, acoplado a uma transmissão automática. 

O Osório foi um dos primeiros projetos desenvolvidos com o auxílio de computação do tipo CAD, o que reduziu bastante seu cronograma. Apesar disso, a Engesa ainda não era capaz de projetar as parte mais sensíveis para as capacidades de combate de um MBT: a torre, o armamento e o sistema de controle de tiro associado.

Para aumentar as possibilidades de venda, o Osório teria duas opções de torre: uma com um canhão inglês de 105 mm (o padrão na maioria dos Exércitos da época) e outra com um canhão francês de 120 mm (o novo padrão que os principais aliados da OTAN começaram a implementar a partir do final da década de 70). Ambas as torres foram desenvolvidas e integradas pelo tradicional arsenal inglês Vickers, e em ambas o canhão seria estabilizado, permitindo disparos precisos mesmo com o tanque em movimento.


Já o sistema de controle de tiro reunia características que até hoje parecem modernas. Tanto o atirador quanto o comandante contariam com periscópios equipados com visão noturna e telêmetro laser. Um computador central analisaria todos os dados do alvo, do veículo e do ambiente para gerar uma solução de tiro bastante precisa. Aliado ao canhão estabilizado, o sistema permitiria que o Osório disparasse durante o deslocamento contra outro tanque também em movimento, mesmo de noite.

Em junho de 1985, logo após ser completado, o primeiro protótipo com a torre de 105 mm foi enviado à Arábia Saudita para uma primeira apresentação, com bons resultados. Um ano depois, o segundo protótipo com a torre de 120 mm seguiu novamente para o deserto, dessa vez para participar de uma extensa bateria de provas contra seus três concorrentes no contrato saudita: o M1 Abrams americano, o Challenger inglês e o AMX-40 francês.

Os testes incluíam tarefas como percorrer 2.350 quilômetros (1.750 deles no deserto), rodar seis quilômetros em marcha a ré, realizar disparos em movimento e contra alvos móveis a distâncias de até 4 mil metros, superar trincheiras e rampas de ângulos variáveis e muito mais.

No começo de 1988, o AMX-40 e o Challenger foram descartados, e o Osório e o M1 Abrams declarados aptos para serem adquiridos, mediante a análise das propostas comerciais. Alguns observadores da época afirmaram que, na soma de resultados, o tanque brasileiro havia tido melhor desempenho que o MBT americano. O otimismo era tanto que um contrato de produção foi minuciosamente preparado – e ele estipulava que a venda para o cliente externo poderia financiar a compra do Osório pelo próprio Exército Brasileiro.

Ao mesmo tempo, a Engesa acabaria participando de outra bilionária concorrência local, dessa vez para o Exército dos Emirados Árabes Unidos (EAU). Mais uma vez, o Osório demonstrou excelente desempenho no deserto.

Em agosto de 1990, porém, tropas iraquianas invadiram o Kuwait, inciando o turbilhão político e militar que culminaria com a primeira Guerra do Golfo. Em novembro do mesmo ano, a Arábia Saudita anunciava a aquisição de 315 tanques M1A2 Abrams por 3,1 bilhões de dólares. Tempos depois, foi revelado que a decisão saudita já havia sido tomada um ano antes, em 1989.

Muitas teorias conspiratórias anti-EUA surgiram no Brasil desde então para explicar a derrota na concorrência. Nenhuma delas parece levar em conta que contratos militares dessa envergadura jamais limitam-se à análise técnica dos equipamentos em questão. Contrapartidas geopolíticas, industriais e econômicas sempre fazem parte dos negócios, e a manifestação desses interesses não torna os protagonistas mocinhos ou vilões.

O problema para a Engesa foi que todo o investimento financeiro e de mão de obra destinados ao Osório acabou deixando de lado justamente os produtos brasileiros mais bem-sucedidos daquela época: os blindados sobre rodas, que ganhariam ainda mais mercado após o fim da Guerra Fria e e a proliferação de conflitos regionais de baixa escala. Sucessos de vendas nos anos 70 e 80, o Cascavel e o Urutu jamais tiveram sucessores no portfólio da empresa.

O outro contrato no qual o Osório estava envolvido, nos Emirados Árabes Unidos, foi vencido pelo novo Leclerc francês. Vítima de má-administração financeira, da falta de encomendas e de uma aposta estratégica bastante arriscada que acabou não dando certo, a Engesa decretou falência em 1993. Em 2001, uma matéria da revista Veja dizia que a empresa era a maior devedora da União, com uma dívida acumulada de 1,8 bilhão de reais.

Por causa disso, os dois únicos protótipos do Osório chegaram a ir a leilão público em 2002. Graças a uma ação do Ministério Público de São Paulo, eles acabaram entregues ao Exército, que os conserva até hoje – e que costuma exibi-los em paradas militares como se fossem a materialização de um sonho que não se realizou. 

Ironicamente, o mesmo Exército que não teve condições de adquirir e financiar pelo menos em parte um MBT da classe do Osório nos anos 80 acabaria realizando compras de tanques usados na década seguinte. Mais de noventa M60 A3 TTS americanos e 128 Leopard 1A1 de origem belga (em todos os aspectos inferiores ao Osório) hoje formam o núcleo da força de tanques do Brasil. Outros 250 Leopard 1A5 alemães também usados – mas relativamente atuais – só agora começam a desembarcar no país.

E a indústria militar brasileira, que já chegou a ocupar uma honrosa 10ª colocação mundial em 1985? Com exceção da Embraer e de alguns fabricantes de armas pessoais e munições, praticamente não existe mais.

Autor: Jalopnik