Responsabilidades no rebaixamento do lençol freático

As responsabilidades do executor da obra e do proprietário do imóvel vizinho no caso de danos causados pelo rebaixamento do lençol freático.

A execução de fundações em terrenos com lençol freático próximo à superfície, em geral, causa movimentação do solo e eventuais danos nos imóveis vizinhos deficientes. Tais ocorrências costumam redundar em conflitos entre esses vizinhos, muitos deles com a necessidade da realização de perícias de engenharia no local, para a determinação das causas pelo surgimento de eventuais anomalias construtivas, respectivas avaliações dos reparos e apurações de responsabilidades. 

O rebaixamento do nível do lençol freático costuma ser necessário na execução das fundações quando a cota da obra está abaixo do mesmo, pois a presença da água acima do nível previsto muitas vezes impossibilita os serviços ou pode provocar instabilidades na base e taludes. Tal situação recomenda escoramentos mais cuidadosos e a drenagem dessa água acima da cota da obra. As técnicas do rebaixamento dependem dos tipos dos lençóis freáticos, que podem ser livres ou artesianos, dependendo das camadas serem impermeáveis ou semipermeáveis, em geral constituídas por esgotamento por meio de bombas no interior da escavação encharcada ou de poços filtrantes em linha coletora de tubos cravados espaçadamente.

Os níveis de rebaixamento do lençol freático podem ser calculados e os efeitos no solo dependem do tipo de rebaixamento e de sua intensidade. Em geral, os rebaixamentos provocam movimentações no solo, principalmente recalques por adensamento da massa de solo, devido ao aumento de seu peso específico aparente pela redução do empuxo hidrostático e acréscimo da pressão entre as partículas constituintes do terreno seco. O fenômeno pode afetar as edificações vizinhas, principalmente aquelas mais deficientes, com fundações diretas ou inadequadas, em solos granulares fofos. Em solos granulares medianamente compactos ou compactos as edificações vizinhas não costumam sofrer modificações significativas, à exceção de eventuais rebaixamentos com carreamento e perda de material, pois causam rigidez elevada nas partículas remanescentes e consequentes recalques.

Assim sendo, percebe-se que os rebaixamentos do lençol freático podem ser absolutamente imprescindíveis para a execução de determinadas obras com escavação, mas também é evidente que há riscos de danos na própria obra e imóveis vizinhos, recomendando cuidados especiais para evitá-los. Os cuidados mais rotineiros para se evitar danos decorrentes dos rebaixamentos do lençol freático consistem na verificação prévia das condições físicas dos imóveis vizinhos, o controle e monitoramento do próprio rebaixamento e a boa execução dos escoramentos. A vistoria dos imóveis vizinhos visa sanar ou minimizar os riscos evitáveis, decorrentes de anomalias aparentes dos mesmos (muros em desaprumo, lajes fletidas, pisos trincados e recalcados, etc.), fazendo-se reforços, e se tentar prever e minimizar os eventuais riscos inevitáveis, decorrentes de fatores endógenos ocultos dos imóveis vizinhos, tais como projetos inadequados ou deteriorações de fundações, idem para as estruturas. Essa medida costuma ser caracterizada pelos laudos de vistoria “ad perpetuam rei memoriam” dos imóveis vizinhos, porém tais laudos não contemplam aprofundadas análises técnicas, como verificações de projetos ou ensaios tecnológicos, mas são muito úteis para os reparos, reforços e escoramentos mais necessários.

O controle e monitoramento do próprio rebaixamento é fundamental para evitar o carreamento de material, bem como controlar o tempo e variações aceitáveis desse procedimento para a segurança da obra, e também para evitar agravamentos ou o surgimento de danos nos imóveis vizinhos. O bom escoramento dos taludes, evidentemente, visa evitar desabamentos e suas consequências. No entanto, nem sempre tais cuidados são suficientes e sempre há uma margem de risco de danos nas obras com rebaixamento do lençol freático e respectivos vizinhos. 

Responsabilidades 

Os danos dos imóveis vizinhos das proximidades da obra, no decorrer do rebaixamento de lençol freático, costumam provocar a necessidade de perícia de engenharia, cujos procedimentos devem seguir metodologia específica, pois são muitos os fatores influenciantes nesses casos. Em geral, os agravamentos ou mesmo novos danos dos imóveis vizinhos às obras sujeitas ao rebaixamento do lençol foram influenciados parcialmente por esse processo, porém, somente em raríssimos casos, essa foi a única causa dos danos. Quase sempre há a concorrência de fatores endógenos do próprio imóvel sinistrado, principalmente daqueles mais antigos, cujas fundações sofreram deteriorações e recalques naturais ao longo do tempo, bem como daqueles imóveis reformados ou com edificações simples, sem projetos adequados de fundações e estrutura.

Os riscos de ocorrência de danos devido ao rebaixamento do lençol freático, quer na obra, quer nos imóveis vizinhos, portanto, são duplos. Arriscam-se os executores da obra com rebaixamento, caso não executem cuidadosamente o serviço. Arriscam-se também os proprietários dos imóveis vizinhos, caso não possuam edificações bem construídas e devidamente bem conservadas, principalmente as edificações antigas, com fundações rasas ou degradadas, que não foram devidamente reforçadas ao longo do tempo. Exemplo típico são as fundações com estacas de madeira, pois o apodrecimento das cabeças das mesmas ao longo do tempo é previsível e evitável.

Outras causas concorrentes dessas anomalias podem ser decorrentes de alterações das condições ambientais naturais da região (aquecimento global, tremores de terra, enchentes imprevistas etc.) ou de outras obras das proximidades, tais como com a canalização de córregos, impermeabilização do solo por novas vias públicas, escavações de túneis e metrô, e outras. Uma analogia que permite a qualquer leigo entender as influências, ou não, do rebaixamento do lençol freático na ocorrência de anomalias construtivas nos imóveis vizinhos é a fábula do lobo e três porquinhos. Fazendo-se um paralelo do rebaixamento do lençol ao sopro do lobo, pode-se inferir que:

-Imóvel vizinho bem construído e bem conservado (casa de tijolos) com fundações e estrutura adequadas, poderá não sofrer danos;
-Imóvel vizinho em condições técnicas medianas (casa de madeira), com fundações rasas e manutenção razoável, poderá sofrer poucos danos; 
– Imóvel em condições técnicas precárias (casa de palha), sem manutenção adequada para adaptar suas fundações e estruturas adequadas ao longo do tempo, poderá sofrer maiores danos. 

Edificações da vizinhança em condições técnicas inadequadas, portanto, sempre terão uma parcela de responsabilidade na eventual ocorrência de danos nas mesmas, quando do rebaixamento do lençol freático de obra das proximidades. Pode-se até mesmo afirmar que essa responsabilidade deve ser totalmente atribuída ao proprietário do imóvel vizinho à obra com rebaixamento, caso sua edificação seja comprovadamente irregular e não possua fundações com o mínimo de resistência necessária para manter sua estabilidade.

Afinal, salvo melhor juízo (s.m.j.), não se pode impedir alguém de bem edificar, utilizando-se legalmente da correta técnica de rebaixamento do lençol freático, em função de terceiros que não protegem adequadamente seus imóveis. S.m.j., o inverso seria o impedimento do direito de construir e mais, o impedimento do direito social de urbanização e crescimento das cidades. A dificuldade dessas perícias, portanto, está em se determinar e bem mensurar os índices de influência dos diversos fatores (endógenos, exógenos, naturais e funcionais) nas anomalias desses imóveis vizinhos às obras com rebaixamento do lençol, pois, em geral, todos eles têm alguma parcela de contribuição.

Roteiro de perícias em edificações

É importante que a verificação dos danos nos imóveis vizinhos siga algum roteiro de perícia em edificações, reportando-se a trecho transcrito do capítulo 15 – “Procedimentos das Perícias em Edificações”, de autoria do infra-assinado, do livro “Engenharia Legal – Novos Estudos” editado pela LEUD, nos seguintes termos:

“Cabe esclarecer que as perícias em edificações visam, primordialmente, a determinação das causas e mecanismos de ação de anomalias prediais, cujos fatores originários genéricos podem ser classificados nos seguintes grupos: meio ambiente; exógenas; endógenas; manutenção; e uso. Vale destacar, ainda, que a perícia de edificação para a determinação das origens das anomalias construtivas e falhas deve se orientar por uma sequência lógica de vistorias, exames, análises, interpretações e procedimentos, cuja ordem mais utilizada no meio pericial é a seguinte:

1°) Verificação geral do local, com vistas a se determinar o contexto da edificação no bairro e entorno, anotando as compatibilidades e discrepâncias; 

2°) A análise preliminar da documentação técnica do imóvel-motivo para a apuração genérica de suas características e especificações (técnicas, de uso, de manutenção e outras); 

3°) A apuração das influências das condições naturais e meio ambiente da região visando o levantamento de eventos que possam gerar anomalias naturais (por ação da natureza) na edificação-motivo; 

4°) Os exames das edificações confrontantes ao imóvel-motivo, para determinar as suas características e condições físicas, bem como de outras particularidades que possam indicar a correlação de ambas no tocante à ocorrência de anomalias exógenas; 

5°) A minuciosa vistoria da edificação-motivo para o levantamento de suas patologias (técnicas, de uso e manutenção); 

6°) Preliminares análises e conclusões das causas das anomalias e falhas constatadas; 

7°) Segunda vistoria e interpretações avançadas das anomalias construtivas e falhas para confirmação ou retificação das conclusões preliminares; 

8°) Preparação dos anexos com os documentos e quadros fotográficos ilustrativos; 

9°) Preparação da fundamentação técnica da origem e causa de cada uma das anomalias e falhas constatadas; 

10°) Final redação e montagem do laudo ou parecer.”

Autor: Engº Tito Livio Ferreira Gomide para a Revista Construção