As inundações de áreas urbanas

A nossa experiência no trato dos problemas de inundações (ou enchentes) em áreas urbanas indica que existem algumas colocações e/ou observações que ainda não foram feitas e que a sua explicitação seria de alguma valia no sentido do melhor equacionamento de problemas dessa natureza. 

Certamente a inundação de qualquer área urbana não é desejada; em princípio, não deveria ocorrer, não é razoável que ocorra; ninguém promove a utilização ou ocupação de um meio físico com a urbanização, pensando que essa área possa vir a ser inundada. O projeto das quadras (lotes) e do sistema viário não é feito para ficar embaixo d água. A sua utilização, nem diria ideal, mas normal seria num meio seco, mesmo quando chove: se espera que a água da chuva caia sobre o solo, as estruturas e as pessoas e suma. 

O responsável por esse sumiço desejado se chama “sistema de drenagem urbana”. A chuva é inevitável, não há meio de se impedir que chova. Nem seria bom que não chovesse: a chuva lava o ar e o solo gratuitamente. Ela é necessária e útil. Ela promove a umidade do ar tão requerida pelos sistemas respiratórios dos homens. 

Um sistema de drenagem urbana adequado é aquele que promove o sumiço das águas da chuva após a sua benéfica ocorrência sem causar transtornos ao funcionamento normal da área urbana.
Daí decorre que a inundação de uma área urbana é consequência de um inadequado sistema de drenagem ou mesmo da sua inexistência. 

Tudo isso vale evidentemente para a ocorrência de precipitações normais. A chuva é um fenômeno resultante de condições hidrorneteorológicas que ainda não podem ser totalmente controladas pelo homem O sistema de drenagem urbana adequado não teria condições de absorver eventos extraordinários, trombas d água, cuja ocorrência está fora da normalidade, não ocorrem sempre, se enquadrariam mais como catástrofes do tipo de ventos muito fortes, furacões, inclusive terremotos, que felizmente não temos por aqui. 

Na RMSP temos cadastradas cerca de 700 áreas urbanas que frequentemente são inundadas sendo 450 só no município de São Paulo. Nessa relação são incluídas aquelas áreas baixas onde a água se acumula e tem seus níveis elevados penetrando nos imóveis e impedindo o trânsito de pessoas e veículos através do viário. Não inclui muitas outras áreas nas quais as águas em excesso escorrem sobre as superfícies dos terrenos e do viário promovendo a erosão dos solos e dos pavimentos e arrastando pessoas e veículos. 

Como salientado acima todas essas situações decorrem de um inadequado sistema de drenagem urbana, ou mesmo da sua inexistência. Como é possível numa região como a RMSP se ter tantos sistemas de drenagem urbana inadequados ou mesmo não existirem esses sistemas? A engenharia urbana não tem capacidade para dar solução adequada a eles? A tecnologia necessária é inacessível ? 

Os seus custos são proibitivos? 

Nada disso. A engenharia nacional conhece e é capaz de projetar, construir, operar e manter esses sistemas. Quanto a seus custos eles existem tanto quanto existem os custos para fazer terraplanagem do terreno e abrir e construir o viário. 

O problema apresenta duas distorções básicas e fundamentais. Em primeiro lugar diríamos que o problema é conceitual. Trata-se de entender o que vem a ser o “processo de urbanização ” na sua integralidade. O sistema de drenagem urbana faz parte integrante do processo de urbanização, seja ele feito sobre uma área virgem ou já urbanizada ( reurbanização).
A urbanização é um processo de intervenção antropica no meio físico. Essa intervenção pode vir a ser necessária em função de objetivos diferentes:

• para promover a ocupação adequada de uma determinada área ( uso do solo);
• para resolver um problema viário ( de transporte ou de trânsito);
• para resolver um problema de estabilidade do solo;
• para resolver um problema de drenagem urbana (inundação);
• para resolver mais de um dos problemas acima.

Porém, a sua solução completa e adequada, somente será conseguida através da solução simultânea, de cada um dos seus componentes intrínsecos:
uso do solo, viário, estabilidade dos solos e drenagem urbana. Esses elementos são interdependentes, a solução de um interfere no outro, e sua não solução integrada gera uma implantação errada do processo, gera um processo manco, não equilibrado, com consequências inevitáveis aos usuários da cidade. 

A drenagem urbana não se constituí, como muitos pensam, em mais uma utilidade urbana como o são a água, o esgoto, a eletricidade, o gás, etc, não, ela é umbelicalmente ligada ao processo de urbanização, vem junto. Não pode ser dissociada. A drenagem urbana não é simplesmente um problema hidráulico, como normalmente é considerada a tratada, mas sim um problema urbano que demanda uma visão ampla sobre o processo de urbanização do qual faz parte integrante. 

O que se observa entre nós é que a drenagem urbana frequentemente se constitui no “patinho feio” da estória, sendo mal tratada ou mesmo esquecida. Ser maltratada é realmente muito frequente mas esquecida também tem se verificado inclusive em grandes obras viárias.
Qual a solução para o problema dessa primeira distorção? É simples e barata. É só conseguir que os responsáveis pelas intervenções urbanas, ou seja, por qualquer processo de urbanização, se conscientizem da necessidade de dar solução adequada, simultânea, no mesmo nível para os quatro elementos básicos que constituem esse processo. Nada mais. 

A segunda distorção se localiza nos métodos de encaminhamento de decisões sobre programas de obras num sistema como o nosso onde as necessidades de investimentos são cronicamente maiores do que as disponibilidades. O racional seria por exemplo, no caso de vinte obras serem -necessárias e os recursos suficientes para apenas cinco, que se programe a execução das cinco que apresentem maior prioridade em função de critérios diversos, inclusive o critério político. Assim as cinco obras seriam executadas e passariam, nos prazos previstos, a serem utilizadas pela cidade ( que nada mais são do que os juros do capital investido). 

Entretanto a ânsia do administrador em atender ao eleitorado, tão mais amplo quanto seja possível, o leva a decidir pela execução das vinte obras reduzindo os custos de cada uma na medida dos recursos disponíveis frequentemente ignorando os resultados dessas obras castradas para sua efetiva utilização pela cidade ( se investe um capital que não renderá os juros que deviam). 

Quando não dá para fazer o mínimo razoável o melhor é que não se faça nada.
Qual a solução para o problema no que se refere a essa segunda distorção? Como a primeira, também é simples e barata. Basta que os responsáveis por decisões sobre os programas de obra passem a toma-las com um mínimo de racionalidade, responsabilidade e respeito pêlos recursos públicos. 

Além dessas colocações básicas e fundamentais, sem as quais tudo o mais fica sem sentido, cabem ainda algumas outras que dizem respeito diretamente à forma como a drenagem urbana é enfocada dentro do seu próprio campo:

1. O sistema de drenagem urbana deve ter em vista sempre, as soluções a nível de planejamento, projetos, métodos construtivos, construção e operação e manutenção, próprias e também dos demais elementos integrantes desse processo.
2. Não existem soluções padronizadas. Cada caso é um caso com suas características e peculiaridades não só para bacias de drenagem diferentes como mesmo dentro de uma mesma bacia. Por exemplo, a preferência pelo uso de canais abertos versus galerias fechadas, a adoção de avenidas de fundo de vale versus parques, etc…
3. Capacidade mínima do sistema: para atender vazões de projeto com tempo de recorrência igual a 10 anos, ou seja, o sistema pode vir a ser superado uma vez a cada 10 anos.
4. Capacidade do sistema: deve ser avaliada em cada caso, bacia de drenagem ou diferentes partes de uma mesma bacia de drenagem, em função da segurança que se pretende e dos custos envolvidos. O mesmo se diga para o próprio dreno principal da bacia, desde que, não se proponha níveis de segurança menores para trechos de juzante domesmo. Qualquer trecho de juzante do sistema deve ter segurança igual ou maior que os de montante.
5. Execução do sistema por etapas em função da evolução das vazões de projeto consequência da evolução da urbanização da bacia: somente devem ser consideradas após análise detalhada da economia global, não só da 1a etapa como das seguintes, considerando sempre o observado no item 1. acima e especialmente a viabilidade técnica e económica de execução das demais etapas do sistema de drenagem com etapas já executadas dos demais integrantes do processo de urbanização.
6. Para as áreas que não tenham condições de serem drenadas por gravidade pelo sistema, considerar antes a alternativa de desapropriação e proposição de usos conformes com a inundação periódica.
7. Considerando a situação da macrodrenagem da RMSP, como regra geral, procurar soluções que retenham águas na bacia e adoção de velocidade baixas de escoamento nos condutos ( não superiores a 2,5m/s).
8. Finalmente, como preocupação de proteção aos sistemas de drenagem urbana, se propõe que os seus responsáveis promovam ampla campanha publicitária para evitar o lançamento de lixo no sistema.

Fonte: www.juliocerqueiracesarneto.com

Autor: Eng°. Julio Cerqueira Cesar Neto