Discurso do engenheiro Adriano Murgel Branco – Eminente Engenheiro do Ano 2008

Embora eu haja exercido atividades profissionais variadas durante 52 anos, tendo sido agraciado com homenagens de diversas naturezas, esta pode ser considerada como singular. Afinal, o que significa ser Engenheiro do Ano? Qual a contribuição especial que fiz à engenharia?
Um dos ilustres membros da comissão que me escolheu para essa homenagem disse: “O Instituto avalia aqui o conjunto da obra” 

Mas quando começou a obra? Logo recordei que, como orador da turma de 1956 da Escola de Engenharia Mackenzie, assumi, com meus colegas, alguns compromissos solenes. Dentre eles, o de seguir ensinamentos como os de S. Tomás de Aquino ao dizer “o homem é por natureza destinado à felicidade geral, obtida por meio da paz e da prosperidade”. A lição de Anhaia Mello, um engenheiro e homem público destacado entre nós, foi a de que “é mister dar prioridade aos conhecimentos do homem, à psicologia humana, a uma base ética firme, declarada, consentida. Assim, a ciência servirá ao Homem; de outra forma, ele, o Homem, será escravo e vitima dela”. 

Então, a carreira começou antes de se iniciar: com os ensinamentos colhidos no seio da família; na fase de ouro da formação escolar na infância e na juventude, base para o futuro; no convívio com os colegas e professores universitários; no contínuo aprendizado que a vida proporciona àqueles que reconhecem o valor de seus companheiros de trabalho; nas lições que se colhem junto aos filhos e netos, interpretes da transformação da sociedade. 

Descubro então que sou um dos lembrados dentre os engenheiros dos últimos 77 anos… Isso vale uma comemoração! 

Nasci numa família de engenheiros certamente ilustres; fiz parte de uma irmandade de professores universitários. Conheci companheiros notáveis de profissão de meu pai e de meus tios; convivi com professores de qualidade ímpar, como com estudantes dedicados, não só nas escolas a que servi, mas em tantas outras com que interagi; colaborei na criação de todas as unidades do Instituto Mauá de Tecnologia, em companhia de mestres inesquecíveis. 

Dirigi empresas e órgãos do governo, onde contei sempre com a solidariedade e a vontade de realizar de todos os companheiros. Tive chefes e orientadores do mais elevado nível.
Assim posso, de repente, refletir: “não foi tão difícil construir o conjunto da obra”. 

Mas quero aqui destacar alguns pontos altos da carreira de muitos de nós. No desempenho de funções públicas temos a oportunidade de conhecer de perto o sofrimento alheio e até a miséria de muitos, num país como o nosso. Acompanhei no Interior do Estado o drama de muitas famílias que ficam apartadas do progresso e até das condições dignas de sobrevivência porque a sua comunicação depende de estradas de terra, normalmente intransitáveis. Recordo a inauguração de uma vicinal em Gabriel Monteiro, quando pediu a palavra um velho sacerdote holandês, de nome Thiago, e disse: “vivo aqui há vinte anos e sou testemunha de quantas pessoas morreram por não ter acesso aos centros de saúde; de tantas crianças que não tem como ir às escolas; de quantos produtos perecíveis se perdem no tempo das chuvas. Com a inauguração desta estrada lhes digo que, agora, posso morrer em paz”. E morreu três meses depois… 

A resposta do Governo do Estado acudindo a essa carência dos municípios e ao desamparo das pessoas, foi o lançamento, em dois anos e meio, de aproximadamente 420 estradas pavimentadas: 6.000 km de pavimentação, dos quais 3.600 km entregamos prontos. Eu diria até do recorde de realização de 420 licitações em tão curto espaço de tempo, sem nenhuma censura do Tribunal de Contas, salvo uma por haver comprado seis sanduíches em uma noite de serão… 

Recordo haver conhecido, de fato, a pobreza, quando ocupei a Secretaria da Habitação: pessoas morando em cortiços, favelas, nas vias públicas e até nos cemitérios. O que esperar de um país que condena ao desemprego, à desnutrição, à deseducação, à miséria, à indigência, à pratica de atos anti-sociais boa parte de seus cidadãos? Mais uma vez, a resposta do Estado se fez pronta: com um histórico de construção de apenas 40.000 casas populares através de décadas, pudemos, em contrapartida, lançar um programa de 120.000 habitações, em 360 municípios, e criar fontes de recursos que permitiram até agora erigir mais de 400.000 unidades, além de amplos programas de requalificação habitacional. 

Sempre ouvi dizer que o funcionário público é indolente, trabalha pouco. Não foi o que constatei nas três vezes em que lidei com eles. O que lhes falta é estimulo, é liderança, é acreditar que as obras em que se empenham terão continuidade. 

Dirigi um conjunto de 50.000 funcionários, quando Secretário dos Transportes. Em todos os setores da Secretaria se desenvolveu um grande esforço, coroado de êxito. Houve exceções, é claro, mas sem maior prejuízo. Era um quadro inchado, por conta da burocracia que acompanha os atos do Governo. Em razão da dificuldade crescente de administrar a coisa pública, ampliam-se hoje as concessões à iniciativa privada. Mas quem a prepara para os novos misteres é a velha guarda do funcionalismo público. 

Sempre ouvi dizer que não há recursos para a solução da maior parte dos problemas públicos. Não é o que vi. Claro, o dinheiro não está nas árvores, mas na improdutividade nacional. Se os recursos materiais e humanos forem aplicados sem desperdícios e com estímulo à produtividade, se os trabalhadores forem motivados, as coisas mudam. O que não é possível é aceitar que a Região Metropolitana de São Paulo suporte, todos os anos, prejuízos sócio-ambientais, derivados do transporte e do trânsito, da ordem de 30 a 40 bilhões de reais! E, o que é pior: há 50 anos esses prejuízos equivalem a um orçamento municipal por ano. Ou seja, perdemos nesse período algo como um trilhão de dólares! 

É triste observar que na maior parte das vezes enfrentamos problemas públicos conhecidos há dezenas de anos. Da minha própria experiência colho exemplos: em 1961 eu escrevera artigos sugerindo modelos novos de equacionamento do trânsito; em 1967 escrevi artigos em muitos órgão da imprensa advertindo que a solução dos problemas do trânsito estava no transporte público; no fim da década de 1970, fui o responsável, como diretor da CMTC, pela modernização dos tróleibus e inicio da implantação de ampla rede de corredores eletrificados. 

O que aconteceu com tudo isso? Pouco se fez e a cidade se tornou inviável. A poluição e os acidentes tomaram conta da vida urbana. 

O caso dos tróleibus é paradigmático. Já na década de 1930 renomados engenheiros publicaram estudos relativos à implantação de linhas de ônibus elétricos em São Paulo. Tempos depois, a Comissão de Estudos de Transportes Coletivos, da Prefeitura Municipal, publicou minucioso relatório sobre os transportes na Capital, em que incluía o projeto de operação com tróleibus (1943). Em 1949 inaugurou-se a primeira linha. 

Em 1975 foi elaborado pelo Governo do Estado, em parceria com a Municipalidade, o Plano Sistran, que previu ampla rede de corredores de transporte por tróleibus, iniciada a partir de 1977. Apesar disso, os tróleibus da Cidade vêm sendo removidos nos últimos anos, exatamente na época em que mundialmente se reconhece a necessidade de reduzir o consumo de combustíveis que contaminam a atmosfera, reforçando o transporte público eletrificado. 

Incluo nesse comentário o grande esforço que o poder público fez desde 1940 para, no âmbito de um conceito de uso múltiplo das águas, desenvolver o transporte hidroviário, que ainda hoje é incipiente no Estado, ao mesmo tempo em que cresce a participação do transporte rodoviário.

Mas o nosso compromisso de formatura apoiou-se também em ensinamentos do Padre Louis Lebret quando disse: “no mundo moderno, a solidariedade deve ser tal que não se pode mais pensar em termos de cidade, região ou país; os problemas só podem e só devem ser considerados em termos de humanidade”. Esse dever de solidariedade me levou a Moçambique, para uma colaboração voluntária nas áreas de transporte e habitação.

 Na África, entendi a revolta contra o colonialismo, que sugou os recursos naturais das nações pobres e as abandonou na miséria. Mais ainda, estimulou guerras e guerrilhas que, em Moçambique, mutilaram milhares e milhares de cidadãos. Por isso não estranhei a proposta de um ilustre economista norte americano, anos atrás, de que o lixo do mundo desenvolvido fosse enviado à África, mediante algum tipo de pagamento. Um ato de grande boa vontade, de profunda benemerência… 

Mas a solidariedade universal não é apenas uma manifestação de boa vontade: é também de sobrevivência do Planeta. A constatação de que a demanda de recursos naturais no globo terrestre já supera em 30% a sua capacidade de reposição, contrastando ainda com a existência de 1,4 bilhões de seres humanos vivendo abaixo do nível de pobreza, mostra inequivocamente que o modo de vida dos países ricos inviabilizou o Planeta. 

Por outro lado, esse mesmo modo de vida, que tem produzido guerras de conquista em alguns países, gera resíduos capazes de alterar o equilíbrio ecológico em escala global, mais uma vez inviabilizando a vida terrestre. Assim fica evidente a necessidade da presença do estado ou até de sua intervenção nos negócios privados, quando se trata de evitar o mal maior. A intervenção do Estado na economia não é uma quebra dos princípios democráticos, como disse Friedman, mas uma imposição da equidade social, da própria defesa dos direitos democráticos. A crise mundial está mostrando isso. 

Tais observações nos levam a algumas reflexões no campo da engenharia. A engenharia da antiguidade produziu construções monumentais, como pirâmides, aquedutos, catedrais, baseadas num importante conhecimento da geometria e uma enorme sensibilidade no campo da estabilidade das construções. Não havia grande preocupação com o equilíbrio econômico, pois o trabalho era escravo e o objetivo, no mais das vezes, era satisfazer a vaidade dos governantes autoritários. 

Com o passar do tempo, veio o sentimento da “viabilidade econômica” que, até pouco tempo, foi o condutor maior das obras de engenharia. Lembro-me, entretanto, da preocupação do engº Plínio de Queiroz, na década de 1970, com “o alcance econômico e social da obra”, que ele caracterizava como uma “engenharia global”. Essa consideração faz distinguir os grandes monumentos do fascismo italiano e espanhol, da nossa catedral de Brasília, intérprete das súplicas do povo, dirigidas aos Céus, e da gratidão pelas bênçãos alcançadas. 

No caminho da História, algumas décadas atrás adveio a preocupação com a análise ambiental e a sustentabilidade dos projetos, inicialmente em âmbito regional e nacional, mas agora dentro de uma visão global. O chamado “retorno social” é hoje a grande preocupação na análise dos projetos, tendente a influir na desigualdade social, cada vez mais em termos universais. 

Esse é o conceito da Nova Engenharia, que se associa aos avanços tecnológicos como nos campos da otimização da energia, da genética, etc. 

A crise econômica de nossos dias enseja reflexões muito importantes e ações novas no caminho da solidariedade e da sustentabilidade universais. Particularmente em nosso País, onde a produtividade equivale a 27% daquela dos Estados Unidos, todas as atenções devem ser dadas a esse fator do desenvolvimento. 

Não é mais possível aceitar que 93% das cargas transportadas no Estado de São Paulo estejam confiadas a caminhões que, para se tornarem competitivos, circulam com idade média de 20 anos, sem inspeção veicular, por motoristas submetidos a regime de trabalho de 20 a 30 horas sem descanso; não é mais admissível que toda a população que se desloca por automóveis e ônibus suporte uma perda de eficiência no trabalho da ordem de 20% e que 14 milhões de deslocamentos, por dia, se dêem a pé; não é mais aceitável que a maior parte dos transportes motorizados se realize através de veículos cujo rendimento energético máximo não ultrapasse a casa dos 30%, o restante da energia transformado em calor; não é mais suportável que o deslocamento de uma pessoa em São Paulo consuma 26 vezes mais energia do que pelo metrô. 

A engenharia tem tudo a ver com a solução desses problemas. O antídoto para a crise econômica, dizem os entendidos desde Keynes, está no investimento em atividades produtivas, particularmente nas infraestruturas, mas não naquelas que perderam o senso de produtividade.
Infraestrutura + Produtividade = Nova Engenharia 

A Nova Engenharia é a Solução da Crise
Oxalá possamos aproveitar as novas exigências universais para reformar os rumos nacionais, internos e externos. 

A grande verdade é que sabemos muito e praticamos pouco. Aprendemos tudo sobre a Terra com o cacique Seatle em 1854; prometemos respeitá-la na Carta da Terra, em 2001. Mas continuamos no caminho predatório da delapidação do patrimônio da Humanidade.
Entretanto, nossa conduta pode ser revertida. Como tem dito o novo presidente norte-americano: 

NADA É IMPOSSÍVEL

Autor: Adriano Murgel Branco