Os pés quase afundam no entulho espalhado no corredor que dá na varanda do 10º andar, de onde se vê a rua Augusta cercada por prédios. Apesar das paredes que foram derrubadas, os traços que dão ao Virgínia aparência de flecha sem ponta seguem iguais.
Inaugurado em 1951 por encomenda da família Matarazzo, o edifício passa por um retrofit, técnica de engenharia que moderniza entranhas de prédios velhos para que fiquem como novos. Renovações desse tipo se espalham pelo centro de São Paulo e são consideradas um dos motores da nova tentativa de revitalização da região.
Desde 2017, a prefeitura aprovou 186 pedidos de reformas e novas construções de edifícios na AIU (Área de Intervenção Urbana) do Setor Central, que oferece incentivos para empreendimentos imobiliários numa área de 2.089 hectares que abrange os distritos centrais e avança sobre pequena porção da zona leste.
Do total de processos, 26 são para requalificações, como também são chamados os retrofits. Entre eles, 21 foram protocolados nos últimos três anos, após a aprovação de um programa municipal específico para retrofits, o Requalifica Centro, que prevê isenções de IPTU e desconto de outros impostos nos distritos República e Sé, assim como na cracolândia, como é conhecia a área na qual se concentram usuários de drogas no centro.
A expectativa da gestão do prefeito Ricardo Nunes (MDB) é atrair 220 mil novos moradores para o centro, o que praticamente dobraria a população de 241 mil residentes na área.
Empreendedores responsáveis pelas reformas afirmam que a revitalização do centro poderá finalmente acontecer após três décadas de tentativas frustradas. Isso porque há uma coincidência de fatores que facilitam esse movimento, como o aumento do público interessado em morar na região e um aprendizado dos empresários em resolver imbróglios judiciais de imóveis.
“Pela primeira vez vejo iniciativa privada investindo, gestão pública interessada em fazer o centro acontecer e, principalmente, um movimento orgânico dos criativos, da arte, da gastronomia. Quando você estuda transformações em grandes centros urbanos do mundo, há sempre o dedo da economia criativa”, diz o arquiteto Marcelo Falcão, 37, sócio da Somauma, a incorporadora responsável pelo retrofit do Virgínia.
Foi pensando em ficar mais perto da nova cena criativa paulistana que a sommelier Gabriela Monteleone, 40, decidiu voltar a morar no centro, em um edifício cujo retrofit foi concluído há cerca de dois meses. Ela passou os anos de isolamento impostos pela pandemia numa casa na Vila Sônia, na zona oeste da capital.
“Meus clientes estão aqui e eu precisava morar em um local a partir do qual eu pudesse transitar com facilidade”, afirma. O prédio escolhido pela empresária é um dos requalificados pela Planta, incorporadora especializada em retrofits para locações que duram, em média, menos de seis meses.
Com oito projetos concluídos ou em andamento desde 2018, todos voltados a transformar prédios comerciais ociosos em residenciais, a Planta foi a primeira a fazer retrofits em série no centro, afirma o fundador Guil Blanche, 33.
Para ele, a requalificação de edifícios acontecerá independentemente dos estímulos do poder público, mas a redução nos custos e a possibilidade de diminuição do tempo de aprovação dos projetos aceleram esse movimento. “O incentivo vem no sentido de equiparar o retorno de um retrofit ao de um edifício construído do zero”, diz Blanche.
Próximo ao Copan e ao Itália, o edifício Renata Sampaio Ferreira é o mais recente da Planta a ficar pronto —os primeiros moradores devem mudar para lá em outubro.
Tombado, contou com um desafio a mais: a demora de quase um ano para a liberação do Conpresp, o órgão municipal de preservação do patrimônio.
O Renata é apenas um dos 1.139 imóveis tombados na AIU do Setor Central.
É um tipo de risco que investidores só estão assumindo devido à certeza de que há público interessado em morar no centro, afirma Gustavo Cedroni, 45, sócio da Metro, empresa de arquitetura responsável pelo projeto.
“Quando eu me formei, há mais de 20 anos, as famílias de classe média queriam morar em condomínio-clube murado. Agora, parte desse público acha melhor viver onde há mistura de pessoas, perto do metrô”, conta.
Nos arredores da praça da República, outro prédio histórico teve sua transformação aprovada recentemente. O edifício 7 de Abril, que foi a sede da Telesp, a companhia de telefonia de São Paulo, será transformado em residencial.
Rebatizado como Basílio 177, o empreendimento vai exibir permanentemente antigos equipamentos da central de interurbanos em uma área do prédio que existe desde 1939, conta Bruno Scacchetti, diretor-executivo da Metaforma, a responsável pelo projeto.
Scacchetti afirma enxergar na expansão dos retrofits de São Paulo um modelo com condições para ir além dos atuais projetos de alto padrão, a ser replicado para a habitação popular.
“Criamos uma metodologia para encaixar apartamentos de qualidade em prédios já prontos e isso leva tempo para desenvolver”, diz Scacchetti, que estuda soluções para retrofits desde 2012.
Estudiosos do déficit habitacional criticam, porém, o modelo de incentivos ao setor imobiliário que está fomentando a retomada da requalificação do centro.
“A coisa mais perversa deste modelo é que, no centro, está havendo um boom imobiliário, com lançamento de apartamentos residenciais e estúdios voltados para quem tem renda alta, pessoas que moram sozinhas e que buscam aluguéis transitórios. Não é uma oferta que atende famílias de baixa renda”, diz Raquel Rolnik, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.
A gestão Ricardo Nunes diz que o seu plano urbanístico para o centro destina ao menos 40% dos recursos arrecadados com outorga à construção de moradias populares para famílias com renda de até dois salários mínimos.
A prefeitura também afirma realizar estudo para a requalificação de 10 edifícios para transformá-los em moradia popular. Considerando toda a cidade, a meta da administração é viabilizar mais de 100 mil unidades habitacionais, entre entregues e contratadas, até 2024.