Trilhos contra a Crise

Três projetos de ferrovias começam a sair do papel, com investimentos de R$ 13 bilhões da iniciativa privada, para dobrar a participação dos trilhos no transporte do País

Os caminhos de ferro começam a entrar, efetivamente, em uma nova fase de investimento pesado e de expansão da malha federal. No momento em que o Brasil ainda dimensiona os impactos socioeconômicos causados pela pandemia de covid-19 e busca alternativas para minimizar os danos à população, vem do setor ferroviário uma resposta concreta, com efeitos diretos sobre o processo de retomada do País e a matriz do transporte nacional.

Estadão fez um levantamento detalhado sobre o que vai ocorrer nos próximos meses no setor ferroviário. A apuração se concentrou em acordos já firmados, contratações de obras e leilões que estão com data marcada para ocorrerem no curto e médio prazos. Das informações obtidas junto a empresários que operam no setor ferroviário, grandes produtores rurais, transportadoras, mineradoras, ministérios ligados ao setor da logística e especialistas em infraestrutura, o que se vê é um cenário marcado por pragmatismo, longe dos discursos oficiais que, até 2015, chegaram a prometer uma estrada de ferro que cruzaria 5 mil quilômetros entre Brasil e Peru, até alcançar o Oceano Pacífico. Não estão mais sobre a mesa ideias megalomaníacas de cruzar o Mato Grosso rumo a Machu Picchu. O objetivo é dar passos que se convertam em investimento, geração de emprego, redução de custos e ampliação do modal. E esses passos já estão marcados pelo traçado de três grandes empreendimentos ferroviários do País.

Em Mato Grosso, um novo trecho de ferrovia sairá do município de Água Boa (MT), para avançar 383 quilômetros até a cidade de Mara Rosa (GO), onde vai se conectar ao eixo central da Ferrovia Norte-Sul. Essa obra dá início à prometida Ferrovia de Integração do Centro-Oeste (Fico), por meio de um acordo já firmado com a Vale. O contrato será assinado até novembro e as obras começam no primeiro trimestre de 2021, com investimento total de R$ 2,73 bilhões e prazo de quatro anos para conclusão.

Acordos com concessionárias vão viabilizar a construção de trechos estruturais pelo País. (Foto: DIDA SAMPAIO/ESTADÃO)

Na Bahia, mais R$ 410 milhões deste mesmo acordo com a Vale já foram reservados pelo Ministério da Infraestrutura para a compra de trilhos, material que vai ser usado para conclusão do trecho central de 485 quilômetros da Ferrovia de Integração Oeste-Leste (Fiol), entre as cidades de Barreiras e Caetité. A aquisição dos lingotes será feita no início do ano que vem. O traçado inicial de 537 quilômetros da Fiol, entre Caetité e o porto de Ilhéus (BA), tem leilão de concessão marcado para o primeiro trimestre de 2021, com investimento de mais R$ 1,6 bilhão para sua conclusão. O porto que será destino final dessa malha deixou de ser uma lenda e começou a ser construído  no mês passado pela Bahia Mineração (Bamin), que confirmou participação na disputa pela concessão da ferrovia.

Ainda no primeiro trimestre do ano que vem, vai a leilão o projeto mais ambicioso de todo o setor, a Ferrogrão, com seus 933 quilômetros entre Sinop (MT) e Miritituba (PA) e investimentos previstos de R$ 8,4 bilhões somente em sua construção.

Juntos, esses três projetos somam R$ 13,140 bilhões de investimento 100% privado, ao longo de cinco anos, com injeção direta na economia já a partir de 2021. É uma guinada histórica no setor ferroviário. A abertura de novos trechos de estradas de ferro sempre foi marcada por uma dependência crônica do dinheiro público. Ferrovia só dá retorno depois que está completamente pronta, diferentemente de uma rodovia, por exemplo, onde o construtor pode começar a utilizá-la antes mesmo de sua entrega total. O mesmo acontece com um terminal portuário ou um aeroporto. Por isso, são raridades os casos em que um investidor privado se dispôs a passar cinco anos ou mais injetando dinheiro em algo que não lhe dê retorno neste período.

A entrada pesada das empresas que acontece agora, porém, se deve a uma mudança crucial de rumo: a permissão para que as atuais concessionárias de ferrovias do País façam a renovação antecipada de seus contratos. Essas concessões realizadas na década de 1990 – e que só venceriam entre 2026 e 2028 – começaram a ser renovadas agora, por mais 30 anos. Em troca, o governo passou a firmar acordos financeiros bilionários, por meio do chamado “investimento cruzado”, um modelo que começa a redefinir a matriz do transporte de cargas no País. Os novos contratos não só garantem a renovação das malhas onde a concessionária já atua, como também corrigem distorções de seus contratos atuais, permitem a modernização de trechos antigos e abrem espaço para que o governo financie projetos estruturais de expansão, trazendo para a realidade ambições ferroviárias que, nos últimos dez anos, amarelavam nas prateleiras dos gabinetes de Brasília.

As negociações firmadas agora aliviam ainda a situação crítica encarada pelo investimento público. E isso é benéfico a todos. “A restrição fiscal e a falta de recurso da União não podem ser desculpa para não buscarmos as soluções que precisamos para expandir a participação do modo ferroviário em nossa matriz de transportes”, diz Tarcísio Gomes de Freitas, ministro da Infraestrutura.

O impacto dessas ações que já estão em curso pode ser medido no curto prazo. A partir do planejamento das próprias concessionárias, a consultoria de negócios Inter.B avaliou o efeito econômico dos investimentos cruzados desenhados para todo o setor, até 2026. Sem a renovação antecipada das concessões, as empresas têm planos de injetar R$ 24,4 bilhões em suas operações nesse período. É o que elas dispõem para ficarem à frente dos trechos onde operam, até o fim de suas concessões, e isso já é muito dinheiro. No cenário em que os acordos são firmados antecipadamente, porém, esse investimento privado salta para R$ 43,6 bilhões, ou seja, são R$ 19,2 bilhões a mais para serem aplicados na ampliação de ferrovias em todo o País.

É esse o cenário que leva o diretor-executivo da Associação Nacional dos Transportadores Ferroviários (ANTF), Fernando Paes, a classificar o momento atual como o mais favorável desde o processo de privatização da antiga estatal RFFSA, concluído entre 1996 e 1998. “Há uma expectativa muito concreta e de curtíssimo prazo de investimentos privados robustos, sem paralelo, talvez, até mesmo com o ciclo inicial pós-desestatização do setor.”

O Brasil, que hoje direciona entre 0,6% e 0,8% de seu PIB anual ao setor de transportes, pode estar distante do cenário ideal de 2,5% do PIB que teria de manter, por duas décadas de investimentos, para modernizar a sua matriz logística. A materialização desses novos projetos, porém, ajuda a pavimentar o caminho para que as ferrovias, que respondem por cerca de 15% do transporte de cargas do País, alcancem a meta do Plano Nacional de Logística e cheguem a 30% até 2025. Às obras.
  • FICO
(Ferrovia de Integração do Centro-Oeste)

Trecho
383 quilômetros, de Mara Rosa (GO) a Água Boa (MT)Investimento previsto na obra
R$ 2,73 bilhõesSituação atual do empreendimento
Execução de obras para o trecho já foi acordada com a Vale, por meio da renovação antecipada de sua concessão ferroviária. A própria empresa vai contratar e gerenciar a execução da obra. Contrato será assinado até o fim deste ano, com início de construção no primeiro trimestre de 2021.
  • FIOL I
(Ferrovia de Integração Oeste-Leste)

Trecho
537 quilômetros, de Caetité (BA) a Ilhéus (BA)

Investimento previsto na obra
R$ 1,6 bilhão

Situação atual do empreendimento
Projeto tem 76% de execução física. Obras no porto em Ilhéus, destino da ferrovia, começaram a ser tocadas pela Bahia Mineração (Bamin) em julho. A empresa também confirmou seu interesse no leilão do trecho, marcado para o primeiro trimestre de 2021.

  • FIOL II

(Ferrovia de Integração Oeste-Leste)

Trecho
485 quilômetros, de Barreiras (BA) a Caetité (BA)

Investimento previsto na obra
R$ 410 milhões

Situação atual do empreendimento
Projeto está com 43% de execução física e já tem dormentes de concreto prontos para instalar em todo traçado. O recurso obtido com a renovação do contrato da Vale já está confirmado e será usado para compra dos trilhos que faltam. A licitação internacional para aquisição desse material acontece no início de 2021.

  • FIOL III
(Ferrovia de Integração Oeste-Leste)
Trecho
550 quilômetros, de Mara Rosa (GO) a Barreiras (BA)Investimento previsto na obra
R$ 5 bilhõesSituação atual do empreendimento
Governo já negocia a renovação antecipada da concessão da Ferrovia Centro-Atlântica (FCA). Contrapartida com a empresa pode viabilizar a construção desta “última milha” da Fiol, conectando-se à malha da Norte-Sul. Ligação deve ser feita a partir Mara Rosa (GO), em vez de Figueirópolis (TO), como estava previsto inicialmente.
  • FERROGRÃO
Trecho
933 quilômetros, de Sinop (MT) a Miritituba (PA)Investimento previsto na obra
R$ 8,4 bilhõesSituação atual do empreendimento
Projeto está em análise final pelo Tribunal de Contas da União (TCU). O governo assumiu a responsabilidade pelo licenciamento ambiental. Rodada de negócios em agosto atraiu 23 grupos interessados, de diversos países e do Brasil. Leilão está marcado para início de 2021.

Fico, a nova rota de saída do Vale do Araguaia

Era uma vez um projeto ferroviário de mais de R$ 40 bilhões, com uma extensão chinesa que começava na pequena cidade de Campinorte, em Goiás, para avançar sobre o Mato Grosso e varar 4,7 mil quilômetros de dormentes e trilhos pelo Peru, até atravessar toda a Cordilheira dos Andes e desembocar no Oceano Pacífico, em alguma praia do litoral peruano, sabe-se lá qual. Essa foi a epopeia logística que, em 2015, chegou a fazer com que o premiê chinês Li Keqiang pegasse um avião em Pequim e desembarcasse em Brasília para apertar as mãos da então presidente Dilma Rousseff. Posaram para fotos, deram entrevistas e assinaram um “protocolo de intenções” com a ousadia de construir a extraordinária Ferrovia Transcontinental. Ou Transoceânica. Ou Transulamericana. Sobrava inspiração para batizar a nova malha de ferro. Faltava realismo.

Cinco anos depois, um trecho de 383 quilômetros é o que, finalmente, vai passar a existir no lugar de uma ambição idealizada nos idos de 1950. E isso já é muito. Trata-se do pontapé inicial para lançar sobre o solo os primeiros dormentes da Ferrovia de Integração do Centro-Oeste, a Fico, um projeto que foi planejado há mais de dez anos, mas que, até hoje, só havia produzido pilhas de papéis.

Em vez de partir de Campinorte, a Fico terá início no município vizinho, a cidade de Mara Rosa (GO), que também é cortada pela malha da Ferrovia Norte-Sul, eixo central de ligação ferroviária do País. Seu traçado seguirá até Água Boa, em Mato Grosso. Com isso, abrirá uma nova rota para o Vale do Araguaia, facilitando o escoamento de grãos para a região produtiva do Mato Grosso que mais cresce nos últimos anos.

No lugar do “protocolo de intenções” com os chineses entrou um contrato firmado com a Vale. Trata-se da contrapartida da mineradora, após conseguir autorização para assinar a renovação antecipada de duas concessões já operadas por suas empresas de logística, a Estrada de Ferro Vitória-Minas, na região Sudeste, e a Estrada de Ferro Carajás, no Maranhão. Depois de viver seu “complexo de trem-bala”, as obras na Fico começam, finalmente, no início de 2021, com investimentos estimados em R$ 2,73 bilhões e prazo de quatro anos para entrega.

“Além de investir recursos na própria malha, a Vale irá construir a Fico, uma ferrovia de 383 quilômetros de extensão que permitirá abrir uma nova opção de escoamento da produção de grãos do Centro-Oeste”, diz Marcello Spinelli, diretor executivo de ferrosos da Vale. As obrigações da mineradora incluem ainda a construção de um ramal ferroviário entre Cariacica e Anchieta, no Espírito Santo, viabilizando a operação até o Porto de Ubu, no litoral capixaba.

“Não há dúvida nenhuma de que essa mudança do investimento cruzado traz avanços significativos na melhoria e na expansão da malha ferroviária de carga no Brasil.”

Rodrigo Vilaça, ex-presidente da ANTF

A atuação direta do setor privado na construção de novas ferrovias, diz Cláudio Frischtak, sócio gestor da consultoria Inter.B, tem ainda a vantagem de driblar as burocracias impregnadas na máquina estatal, além de se distanciar dos esquemas de corrupção que, regularmente, dragam os recursos públicos. “O benefício não se limita ao investimento direto. O modelo de investimento cruzado coloca uma empresa que já atua no setor à frente da execução da obra. Isso significa agilidade, evita morosidades e fecha as portas, inclusive, para problemas de desvios, como os ocorridos ao longo da história da Valec.”

Rodrigo Vilaça, especialista do setor ferroviário e responsável pela área de relações institucionais da FGV Transportes, lembra que a modelagem dos investimentos cruzados – que foi viabilizada pela Lei 13.448, de 2017 – já era defendida há anos pelo setor, mas só agora começa a se tornar realidade, depois de ter passado pelo crivo do Tribunal de Contas da União (TCU), que em maio autorização a renovação antecipada das ferrovias da Malha Paulista, da concessionária Rumo. Em julho, foi a vez de aprovar dois trechos da Vale. Novas renovações já estão previstas e acordos começam a ser discutidos.

“O resultado está aí, é palpável. Não há dúvida nenhuma de que essa mudança traz avanços significativos na melhoria e na expansão da malha ferroviária de carga no Brasil. Vibrei muito com a proposta do investimento cruzado”, diz Vilaça, que presidiu por anos a Agência Nacional de Transporte Ferroviário (ANTF). “Isso coloca uma ótica mais moderna sobre esses contratos, com melhor aproveitamento das atuais concessionárias e da iniciativa privada, enquanto a agência regula e o governo se concentra no suporte para avançar com o licenciamento ambiental, as desapropriações e demais autorizações.”

No fim do dia, o modelo preserva os cofres públicos, ainda mais depauperados pela crise econômica aprofundada pelo  novo coronavírus. “A ideia é que, em vez de abastecer o Tesouro com essas outorgas de concessões (valores pagos pelas empresas para renovarem seus contratos), possamos aplicar esses recursos diretamente no setor”, diz Tarcísio Gomes de Freitas, ministro da Infraestrutura. “A empresa fará isso contando com seu conhecimento na construção de ferrovias, com a agilidade e a praticidade próprias da iniciativa privada.”

A Vale, por meio de suas empresas de logística, vai construir o primeiro trecho da Fico, mas não será a dona do traçado. Quando concluí-lo, vai entregá-lo ao governo, que então poderá licitar essa nova ferrovia a qualquer companhia interessada em explorá-la comercialmente. Na prática, isso vai gerar uma nova concessão que pode trazer, como contrapartida, a exigência de se construir mais uma extensão da malha. “É assim que vamos viabilizar uma expansão ferroviária sem precedentes na história recente do País, sem um centavo de recurso público”, afirma o ministro.

Até 2025, os 383 quilômetros da Fico devem estar plenamente operacionais, bem distantes da Cordilheira dos Andes.

Fiol, a revolução a caminho do Matopiba

A ministra da Agricultura, Tereza Cristina, visitava sua filha nos Estados Unidos, durante as férias no ano passado, quando chamou o genro de canto e pediu que ele marcasse um encontro com fazendeiros locais. Queria ouvir o que a turma do Mississipi pensava sobre o Brasil.

Marcaram um almoço. Depois da comida, sem saber do cargo que Tereza ocupa no Brasil, um dos produtores deu seu veredicto à fazendeira brasileira. “Vocês já têm tecnologia, semente, clima, luz, fazem duas safras por ano. Só que vocês não têm uma coisa que eu tenho”, disse o produtor, que bateu no peito e sacramentou: “Hoje eu encho meu caminhão com a colhedeira, sento no banco dele às nove da manhã e vou até ali, no porto do Rio Mississipi, por uma estrada de asfalto, entrego a minha produção e ainda volto a tempo de almoçar em casa. Nosso medo é o dia que vocês tiverem isso, também”.

Tereza riu. No instante seguinte, contou a ministra à reportagem, pensou no Matopiba, uma área gigantesca de 73 milhões de hectares batizada por um acrônimo formado pelas iniciais dos Estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. Hoje, é a fronteira agrícola mais promissora do Brasil. Só falta combinar com a logística. “É esse o nosso grande desafio, a infraestrutura. O mundo vê o Brasil como um grande competidor no agronegócio, mas isso não é por causa da Amazônia, mas sim porque temos o Matopiba. Ele já tem crescido, mas devagar, porque ainda não temos uma boa logística por lá”, diz a ministra.

A revolução prometida ao Matopiba começa a ganhar contornos mais nítidos. As obras da Ferrovia de Integração Oeste-Leste (Fiol), na Bahia, completaram uma década neste ano sem que nenhuma locomotiva tenha circulado até agora sobre seu traçado projetado de mais de 1.500 quilômetros. Um rearranjo inédito com parcerias privadas, no entanto, está prestes a dar vida para a Fiol, traçado por traçado.

Planejamento já considera a ligação da Fiol com Ferrovia do Centro-Oeste, cortando a Norte-Sul. (Foto: RICARDO BOTELHO/MINFRA)

São três soluções distintas em andamento. No primeiro trecho, de 537 quilômetros, que sai de Ilhéus (BA) e avança pelo Estado baiano até Caetité, as obras estão com 76% de execução física. O Porto Sul, em Ilhéus, destino final da ferrovia, começou a ser construído em julho pela Bahia Mineração (Bamin), empresa controlada pelo Eurasian Resources Group (ERG), do Cazaquistão. Foram pelo menos cinco anos de discussões, brigas na Justiça e revisões de projetos sobre o local onde o porto poderia ser erguido. Essas dúvidas, agora, estão no passado.

Dona de um projeto de minério de ferro em Caetité e, agora, de um terminal portuário em Ilhéus, a Bamin é, naturalmente, a maior interessada em assumir o novo trecho da ferrovia, que deve terá seu edital de concessão publicado ainda até o fim do ano, com leilão marcado para ocorrer no primeiro trimestre de 2021. O investimento previsto para a conclusão dessa obra é de R$ 1,6 bilhão.

A Bamin não esconde o interesse em vencer a licitação. “A Fiol, que, com o Porto Sul, vai criar um novo corredor logístico na Bahia e no Nordeste do Brasil, é fundamental para o nosso negócio”, diz Alexandre Aigner, diretor financeiro e de relações institucionais da Bamin. “Nosso plano é usar esse corredor logístico para nossa produção de ferro de até 18 milhões de toneladas por ano, e esperamos desempenhar nossa parte para tornar a próxima concessão um sucesso.”

“A Fiol, com o Porto Sul, vai criar um novo corredor logístico na Bahia e no Nordeste do Brasil, o que é fundamental para o nosso negócio.”

Alexandre Aigner, diretor da Bahia Mineração

No trecho central da ferrovia, de 485 quilômetros, entre Barreiras (BA) e Caetité, já foram reservados R$ 410 milhões para a compra dos trilhos que faltam para conclusão do traçado. Esse dinheiro tem origem na renovação antecipada das concessões da Vale. Uma licitação internacional para compra dos trilhos – já que o Brasil não tem fábrica do material – será feita no início de 2021. Esse trecho está com 43% de execução física e tem hoje cerca de 1,5 mil funcionários da estatal Valec em seus canteiros de obra. É a conclusão deste segundo traçado que coloca o transporte ferroviário dentro do Matopiba. Se no primeiro trecho a prioridade é o minério, no segundo há o algodão, a soja e o milho.

“O Brasil está prestes a viver um novo ‘boom’ no setor ferroviário, graças à prorrogação antecipada das concessões. Isso é o que permitiu que parte dos recursos de nossa outorga seja usada ainda na compra de equipamentos para a Fiol”, diz Marcello Spinelli, diretor-executivo de ferrosos da Vale.

Para o terceiro lote da Fiol, o Ministério da Infraestrutura negocia mais uma parceria com o setor privado. O objetivo é firmar um acordo dentro da renovação antecipada da Ferrovia Centro-Atlântica (FCA). O objetivo é fazer com que um novo contrato viabilize a construção dessa “última milha” da ferrovia, conectando-se, finalmente, à malha da Norte-Sul. Apesar de o projeto atual prever que essa conexão ocorra no município de Figueirópolis (TO), o planejamento já considera que a ligação se dê na cidade de Mara Rosa, fechando uma conexão direta com a estrutura da Ferrovia do Centro-Oeste (Fico).

Um vez concluído, esse projeto dará vida à chamada “cruz ferroviária”, ao cortar a Ferrovia Norte-Sul com uma linha horizontal, de leste a oeste do País. Cria-se, ainda, a possibilidade de saída a partir de três portos por meio de ferrovias, com acessos aos terminais de Santos (SP), Itaqui (MA) e Ilhéus (BA).

“O investimento cruzado permite a realização de investimentos expressivos na malha ferroviária, mesmo neste contexto causado pela crise fiscal dos últimos anos e, agora, pela pandemia do coronavírus”, diz o diretor executivo da Associação Nacional dos Transportadores Ferroviários (ANTF), Fernando Paes. “Nesse momento do País, isso fica ainda mais necessário e urgente, seja sob o ponto de vista logístico, seja pelos impactos benéficos e imediatos dos investimentos. O resultado será maior equilíbrio da matriz de transporte de carga e efeitos sociais, com geração de emprego e renda.”

Ferrogrão, a “malha verde” do Eixo Norte

O adágio popular diz que, da porteira pra dentro, não há fazenda no mundo que bata a produção de uma propriedade brasileira, mas que, da porteira pra fora, o Brasil leva uma surra dos concorrentes, esfolado na precariedade da infraestrutura nacional. Essa história pode começar a mudar no primeiro trimestre de 2021, quando acontece o leilão da Ferrogrão, hoje o projeto de infraestrutura mais ambicioso do País.

A ferrovia dos grãos se enquadra naquilo que os americanos chamam de projeto “green field”, referência que remete a algo que tenha de ser começado do zero. O marco inicial da ferrovia acessa o coração da soja em Mato Grosso, no município de Sinop, e a partir dali avança rumo ao norte do País, paralelamente à rodovia BR-163, a Cuiabá-Santarém, até alcançar os portos fluviais de Miritituba, no Pará, nas margens das águas quentes do Rio Tapajós.

Os números amazônicos da Ferrogrão dão a dimensão do desafio financeiro. Só a construção da ferrovia é estimada R$ 8,4 bilhões, em incluir os investimentos nos trens e vagões, o chamado “material rodante”. O prazo de concessão, uma regra que, em outros projetos, tem sido fixada em 30 anos, está previsto para 69 anos. Em seu traçado, a ferrovia segue pela faixa de domínio da estrada, para evitar conflito com uma das áreas ambientais mais sensíveis da Amazônia, como unidade de conservação do Jamanxim, no Pará.

Marco inicial da Ferrogrão passa pelo coração da soja em Mato Grosso, na cidade de Sinop. (Foto: TIAGO QUEIROZ/ESTADÃO)

O governo é hoje o responsável por fazer com que o projeto possa vingar. O DNA da Ferrogrão, no entanto, está impregnado de iniciativa privada. Os pais da criança são as “tradings”, quatro gigantes da importação e a exportação de commodities agrícolas, as “ABCD”, como são conhecidas ADM, Bunge, Cargill e Dreyfus, além da Amaggi e DLP.

“Essas empresas estudaram a ferrogrão e fizeram seu projeto executivo. A ideia sempre foi estimular o governo a colocar essa ferrovia em licitação, para que outras empresas especializadas neste transporte, construtoras e fundos de investimento possam participar”, diz Blairo Maggi, ex-ministro da Agricultura e um dos maiores empresários do agronegócio. “Essa ferrovia vai ser de fundamental importância para o Mato Grosso e demais regiões, porque vai aumentar a competitividade do transporte, os preços vão cair. Quanto antes ela vier, melhor para todo o País, que ficará cada vez mais competitivo.”

Para dar um sinal concreto aos investidores de que o empreendimento é viável, o próprio Ministério da Infraestrutura assumiu a responsabilidade de obter a licença prévia ambiental da ferrovia, autorização do Ibama necessária para atestar a viabilidade da obra. O contrato de concessão, inclusive, vai incluir essa responsabilidade pelo poder público, sob pena de a concessão ser cancelada sem nenhum tipo de ônus para o empreendedor.

“Quanto antes a Ferrogrão vier, melhor para todo o País, que ficará cada vez mais competitivo.”

Blairo Maggi, ex-ministro da Agricultura

Na primeira semana de agosto, a Secretaria Especial do Programa de Parcerias de Investimentos do Ministério da Infraestrutura resolveu testar o interesse dos investidores no projeto e enviou alguns convites, para uma rodada de reuniões fechadas. Recebeu respostas para 22 agendamentos. A lista de conversas de 90 minutos incluiu os principais bancos brasileiros, concessionárias que já atuam na área de transportes e companhias de países como China, Espanha, Itália e Japão. Metade do grupo selecionado era formado por operador, controlador de concessão ou construtor de ferrovia. A outra metade era  financiadores e empresas que pretendem entrar como acionistas.

Hoje, os grãos de Mato Grosso dependem da BR-163 para chegarem aos terminais fluviais do Pará, instalados em Itaituba e Santarém. O caminho inverso também não é simples, até embarcarem na Malha Paulista, que segue rumo ao porto de Santos. Uma malha de trilhos até Miritituba significa ter uma saída direta pelo Tapajós, por meio de uma hidrovia natural que desemboca no Rio Amazonas e que, partir daí, segue mundo afora.

As preocupações com o impacto ambiental do projeto costumam predominar nos debates sobre a viabilidade da ferrovia que cruza o Cerrado e a Amazônia. O ministro Tarcísio de Freitas ainda era um secretário de coordenação de projetos em 2017, quando defendia o projeto da Ferrogrão em audiências públicas feitas em Mato Grosso, Pará e Brasília. O compromisso é de construir a ferrovia ao lado da estrada, sem acessar unidades de conservação ambiental ou terras indígenas.

Em vários debates, o projeto chegou a ter sua viabilidade questionada, inclusive, por sindicatos de caminhoneiros. Num arroubo “rodoviarista” que remetia à década de 1950, os motoristas se mostraram assombrados com a possibilidade de verem comboios de vagões abarrotados de grãos, seguindo por uma malha de trilhos. Ocorre que a ideia é exatamente essa.

Na carroceria de um caminhão, a distância percorrida por cada tonelada de carga, com um litro de combustível, chega a 25 quilômetros, em média. Nas ferrovias, essa distância sobre para nada menos que 85 quilômetros. Coloque ainda nesta conta efeitos como frete mais barato, redução de emissões de gás carbônico, menor impacto ao meio ambiente, capacidade de carregar grandes volumes, maior segurança e previsibilidade de operações, além dos investimentos envolvidos na construção e operação da linha, com geração de milhares de empregos. Não há tese que se sustente contra uma realidade dessas.

“A Ferrogrão vai tirar carga da BR-163, reduzir a especulação fundiária na região, ajudar a fazer o Estado mais presente no combate a atividades clandestinas e ainda funcionará como uma espécie de ‘muro verde’ em proteção à floresta, contra a abertura de novas espinhas de peixe (entradas abertas a partir da estrada, para roubo de madeira) ao longo da rodovia”, diz Tarcísio de Freitas.

Para carimbar um selo ambiental no projeto, a Ferrogrão vai permitir a captação dos chamados “green bonds” e “green loans”, o dinheiro verde que, cada vez mais, tem pautado as transações de capital internacionais. A alternativa foi criada a partir de um convênio fechado com a Climate Bond Initiative, em 2019. “Agora, todo programa ferroviário já parte com prerrogativas sustentáveis e está habilitado a captar investimentos de fundos que se preocupam com a questão do meio ambiente”, diz a secretária de Fomento, Planejamento e Parcerias do Ministério da Infraestrutura, Natália Marcassa.

“As ferrovias são eficientes para o transporte de minérios e grãos, além de serem uma solução para o escoamento pelo eixo norte, preservando a floresta amazônica.”

Tarcísio de Freitas, ministro da Infraestrutura

O que se busca, na prática, é transformar a preocupação ambiental em um ativo da ferrovia. ”Estamos atentos a isso e preparados para atrair esses recursos. Ferrovias são meios de transportes de maior eficiência energética e que ajudam a reduzir a emissão de poluentes na atmosfera”, comenta o ministro. “Elas são o modo de transporte mais eficiente para o transporte de duas commodities que são as bases de nossas exportações, os minérios e os grãos, além de serem uma solução importante para o escoamento pelo eixo norte, preservando a floresta amazônica.

A construção de novo trechos de ferrovias se soma à malha que hoje chega a 30 mil quilômetros de extensão em todo País. Desse total, cerca de 12 mil quilômetros são competitivos ao transporte de carga e possuem uso regular constante. A maior parte dos trechos, no entanto, está subutilizada ou, até mesmo, abandonada.

As renovações de contratos de concessões têm auxiliado não apenas na abertura de novos traçados, como também apoiado a recuperação de trechos e a devolução de traçados ao poder público, que pode analisar a sua viabilidade de ser retomado, incluindo situações para a abertura de transporte de passageiros, por exemplo.

“Há uma disposição hoje para buscar mais o diálogo, e isso envolve não só governo e empresas, mas órgãos como TCU e a agência reguladora. O resultado são medidas mais acertadas, que favorecem todo o País”, diz Rodrigo Vilaça, relações Institucionais do FGV Transportes.

Se a pandemia do coronavírus jogou a economia do País na lona, os projetos de ferrovias e seu sistema secular de transporte surgem, mais uma vez, como um caminho para auxiliar na saída da crise. As rotas já são conhecidas. É preciso trilhar.

Por André Borges
Fonte O Estado de S.Paulo