Por José Eduardo Cavalcanti – O estado novo foi fruto de um fake

Por José Eduardo Cavalcanti*

Neste mês de novembro, ao transcurso do 82º aniversário da decretação do Estado Novo por força de um golpe de estado perpetrado por Getúlio Vargas, então chefe de um governo provisório, é útil abordar de forma clara os antecedentes de uma grande farsa revelada anos depois que levaram o Brasil a experimentar uma ditadura que permaneceu por 15 anos até que Getúlio fosse deposto em 1945.

À época emergiam duas candidaturas à presidência da República no cenário político nacional: José Américo de Almeida e Cristiano Machado. Ambas desafiavam os anseios continuístas de Vargas e os acontecimentos políticos que se sucederam serviram de pretexto para que elas fossem abortadas e um novo regime emergisse.

Em 1937, o Capitão Olímpio Mourão Filho, (o mesmo oficial que, como General, comandou as tropas que partiram de Juiz de Fora dando início à Revolução em 1964) simpatizante do integralismo, elaborou secretamente um documento, a pedido de Plínio Salgado então dirigente da Ação Integralista Brasileira (AIB) que apoiava Getúlio, simulando uma insurreição comunista objetivando derrubar o presidente Vargas por meio de uma intentona.

No entanto, tal documento era apenas para ser usado no âmbito interno da AIB exclusivamente para fins de estudo como revelou anos mais tarde o próprio General Mourão.

Porém, este documento acabou caindo indevidamente nas mãos da cúpula da Forças Armadas vindo a calhar para os propósitos golpistas de Vargas. Foi imediatamente divulgado sendo lido através do programa radiofônico Hora do Brasil (atual Voz do Brasil) pelo General Góis Monteiro, então chefe do Estado-Maior do Exército, batizado por ele como “Plano Cohen” (em alusão ao líder comunista húngaro Bela Cohen).

No dia seguinte ao deste pronunciamento, o presidente mais do que depressa solicitou ao Congresso Nacional a decretação do Estado de Guerra o que permitiu ao Governo iniciar uma intensa perseguição aos comunistas e a opositores a fim de debelar a “ameaça vermelha”.

Em 10 de novembro, a ditadura do Estado Novo estava implantada. Semanas depois o exército fechou o Congresso e uma nova Constituição preparada por Francisco Campos foi outorgada à nação.

Embora alguns generais de alta patente tivessem participado desta trama, a bem da verdade, deve-se dizer que nem todos os oficiais generais em postos de comando estavam de acordo com aquela manobra eminentemente política a qual só se efetivou com a absoluta omissão do então Ministro da Guerra General Eurico Gaspar Dutra.

Uma carta pessoal enviada ao Ministro da Guerra pelo General Pompeu de Albuquerque Cavalcanti, então comandante do Distrito de Artilharia de Costa, espelha o pensamento da grande maioria da oficialidade do exército brasileiro frente toda àquela situação:
Rio, 9/11/1937

Exmo. Sr.
Ministro da Guerra
Respeitosas saudações

V. Excia teve a bondade de esclarecer-me sobre as intenções do Governo no atual momento político.
Segundo estes esclarecimentos, as duas candidaturas presidenciais seriam abandonadas e substituído o atual regime político por outro de feição diversa, e ao que pude perceber, de caracter integralista.

De fato, seriam dissolvidos os atuaes ramos do poder legislativo e substituído por uma câmara corporativa, continuando o atual Presidente no Governo por tempo não fixado ainda.
V. Excia. esclareceu-me mais, que tal transformação seria feita pelos órgãos representativos da nação concretizados nos atuaes Governadores, exceptuados dois ou três que seriam substituídos,e entre eles o da Bahia que falava mesmo em resistir.

Caberia a iniciativa ao Governador de Minas Gerais, que já havia mesmo dirigido uma consulta à quasi todos os Governadores.

Quanto à S. Paulo esperava-se que as negociações estabelecidas chegassem a bom termo.
V. Excia fez-me sentir que o exército se alheava do movimento e que acataria as deliberações dos representantes do povo manifestadas, na opinião de V. Excia.,com legitimidade nas pessoas dos Governadores já referidos.

V. Excia manifestava-se favoravelmente ao movimento porque reconhecia na atual Constituição uma completa incapacidade para permitir o exercício da autoridade, e por outros motivos poderosos.

Pela minha parte, declarei à V. Excia. que não podia considerar o Exército alheiado desse movimento – verdadeiro golpe de estado em perspectiva, não só porque tinha espalhados diversos destacamentos com fins bem conhecidos por todos como porque, guarda das instituições, cabia-lhe mantel-as e defendel-as.

Não cogitava eu de proclamar a excelência do regime vigente, porque partilhava do septicismo reinante a respeito do mesmo. Mas essa em uma opinião pessoal.

Impunha-se antes de tudo, antes de impôr-se um regimen novo à Nação, atônita diante dos acontecimentos, que se operasse um movimento de opinião, seja a livre manifestação dos seus órgãos legítimos de representação ou de elementos de sua elite.

Não é compreensível que somente pela fé se aceite uma forma de Governo, que de antemão se não conhece, e é guardada sob sigilo até mesmo para as mais graduadas autoridades.
Aliás, inclinado embora à modificação na Carta Magna, eu não me propunha a formular a maneira pela qual a inovação se
deveria processar.

Eu não me iludo com a imposição de força que ora se faz, imposição de que participam apenas alguns elementos das classes armadas, não a sua grande maioria, pelo que percebo.

Contrario por principio aos movimentos subversivos, como revelam os meus antecedentes, e ainda mais, no momento em que as aspirações comunistas e integralista se viriam misturar com as aspirações democrático liberaes, que ainda dominam a consciência da maioria da Nação, eu não desejo arrastar os meus comandados num movimento em torno do seu chefe.

Confesso entretanto à V. Excia, que no seio do Exército, eu ouço as opiniões muito divididas a respeito de quanto se articula.

É essa uma prova de fraqueza do cometimento que se deseja levar avante, talvez um fermento latente para futuros descontentamentos.

Sacrificados no seu papel de instrumento valioso de nossa política externa, pelo abusivo emprego que dele se faz na política interna, o Exército será a maior vítima do atual movimento.

E V. Excia,. releve-me que o diga, terá grande responsabilidade no que possa acontecer, porque em V. Excia. o Exército confiava cegamente.

Oxalá só advenham glorias para V. Excia e se comprove a minha absoluta falta de visão politica.

Digne-se V. Excia,, dar suas ordens
De V. Excia subordinado em amº e adm. dor
General Pompeu Cavalcanti

Ao receber esta carta, Dutra ordenou a prisão do Gal Pompeu, destituiu-o do comando, e o transferiu para a reserva “por conveniência do regime” como ele próprio relatou em suas memórias e repetida em sua entrevista à revista VEJA em 1972 . Textualmente: “O general Pompeu Cavalcanti enviou-me uma carta em que expõe seu ponto de vista contrário ao movimento. Mandei prendê-lo e o destituí do comando do Distrito de Artilharia de Costa… Fora esse pequeno incidente, tudo se processou normalmente.”

A terceira República estava irremediavelmente implantada e perdurou como uma ditadura até 1945 constituindo-se em um triste episódio, fruto de uma farsa grotesca, que envergonhou toda uma nação.

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*JOSÉ EDUARDO W. DE A.  CAVALCANTI

É engenheiro consultor, diretor do Departamento de Engenharia da Ambiental do Brasil, diretor da Divisão de Saneamento do Deinfra – Departamento de Infraestrutura da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), conselheiro do Instituto de Engenharia, e membro da Comissão Editorial da Revista Engenharia

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*Os artigos publicados com assinatura, não traduzem necessariamente a opinião do Instituto de Engenharia. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo