Pandemia gera movimento raro no Brasil de filantropia para a ciência

Doação ajudou a tirar do papel ventilador pulmonar; Unicamp se organizou para atrair contribuição

Natalia Pasternak doou como pessoa fisica para pesquisa e insumos de saúde Foto: DANIEL TEIXEIRA/ESTADAO

A bióloga Natália Pasternak, do Instituto de Ciências Biomédicas da USP, tem se destacado na pandemia do novo coronavírus como uma das principais divulgadoras científicas do País a explicar assuntos complexos que, da noite para o dia, se tornaram corriqueiros no nosso cotidiano, como cloroquina, testes sorológicos e de PCR, ensaios clínicos.

Seu esforço para combater a covid-19 e a desinformação científica, porém, vai além de seus estudos e a participação em TVs, jornais e redes sociais. Envolve um trabalho de bastidores e o aporte de pelo menos R$ 2,4 milhões em pesquisas e insumos.

Neta de uma das fundadoras do grupo Vicunha, que controla a CNS (após a morte de sua avó, a família vendeu a parte para os outros sócios, os Steinbruch), Natália tem aproveitado a herança para investir em ciência.

“Na minha vida de cientista, eu sempre quis dar um bom uso para esse dinheiro. Minha avó fazia muita filantropia. Era uma doação mais voltada para a colônia judaica – coisa bastante comum entre os judeus. Ciência não ficava no radar. Nem estou falando só de doação, mas de uma parceria mais constante, como é comum nos Estados Unidos (o chamado endowment, conhecido no Brasil como fundos patrimoniais)”, diz.

Em 2018 ela fundou o Instituto Questão de Ciência, voltado para, como explica Natália, “à defesa da ciência”. O IQC edita a Revista Questão de Ciência e produz conteúdos que combatem as fake news e distorção do conhecimento científico. Para o instituto, Natália já faz um aporte anual de cerca de R$ 1,5 milhão. Com a pandemia, ela viu a necessidade de investir também nos esforços contra a doença.

“Começou com um professor da Santa Casa comentando comigo que o hospital estava desesperado porque não tinha dinheiro para comprar os EPIs. Ele me disse que precisava de R$ 150 mil e eu falei: ok. Foi minha primeira doação. Aí comecei a procurar outros lugares que estavam com dificuldades. O ICB, onde eu pesquiso, estava precisando desesperadamente de reagentes para os testes diagnósticos. O custo era R$ 120 mil. Falei: tudo bem. Depois doei mais R$ 150 mil para o Hospital Universitário da Unicamp para comprar EPIs”, relata Natália.

Foi quando ela conheceu o Inspire, da Poli-USP, que desenvolve um ventilador pulmonar de baixo custo. “O projeto ia morrer no papel se eles não conseguissem comprar insumos para fazer o piloto. O coordenador, Marcelo Zuffo, me falou que precisaria de no mínimo R$ 2 milhões para o dia seguinte. Envolvi minha mãe, que é professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, porque precisaria pegar dinheiro de investimento da família, e ela topou.”

O projeto havia recebido um apoio inicial de R$ 150 mil num movimento de doação de ex-alunos da Poli, conta Zuffo. Mas a doação de Natália permitiu que ele fizesse o piloto e agora já está atraindo outros doadores. Natália, por sua vez, decidiu contar essa história ao Estadão para inspirar outros milionários a doarem para a ciência não só neste momento de emergência, mas de um modo permanente.

Ela cita como exemplo de algo que poderia contar com uma filantropia permanente um esforço atual do ICB no desenvolvimento de cinco projetos de pesquisa de vacina contra o coronavírus.

“Já pedimos financiamento das agências de fomento, como Fapesp e CNPq, mas gostaria de apresentar isso a potenciais filantropos. Explicar onde o dinheiro doado seria usado, que ele poderia ajudar a desenvolver o conhecimento sobre as vacinas”, afirma Natália.

“As pessoas não sabem direito como funciona a ciência. Há uma incompreensão. Escutei coisas como: ‘Mas já há vacinas quase prontas, como a de Oxford, a dos Estados Unidos. Para quê investir em mais pesquisas de vacina?’. Mas todas as pesquisas são importantes. Tudo o que está sendo gerado de conhecimento sobre o vírus é importante para melhorar a resposta para epidemias futuras. E precisamos também ter produção própria para o Brasil”, explica.

Natália pondera ainda que, para mudar a cultura de filantropia no Brasil, é preciso comunicar bem os projetos para atrair mais doadores. “As pessoas doam para causas que elas acreditam. Se queremos atraí-las, nós cientistas temos de nos dar o trabalho de ir explicar o projeto para elas entenderem, verem o resultado.”

Projeto pioneiro

As doações para ciência são coisa rara no Brasil, ao contrário do que ocorre nos Estados Unidos. A primeira iniciativa nesse sentido foi a criação, pela família Moreira Salles, do Instituto Serrapilheira, de fomento à pesquisa. “Essa é uma fonte de financiamento importante porque consegue dar apoio para que pesquisadores se dediquem à coisas que, em geral, nem a fonte pública nem a fonte privada estão interessados em financiar. A filantropia para a ciência consegue aguentar um risco maior, tem mais flexibilidade”, explica Hugo Aguilaniu, diretor-presidente do Serrapilheira.

Ele comenta que tem visto várias iniciativas de doação com a pandemia. “Muitas pessoas estão se manifestando  pela percepção de catástrofe social, e as doações são absolutamente críticas. Mas o investimento filantrópico estruturado não é sinônimo de urgência. O ideal é que isso que está surgindo possa se manter de tal forma que venha a ser uma parte importante da ciência brasileira. Que dê condições de ela ser mais reativa e também mais criativa”, diz.

“Torço para que essa crise tenha impacto de fazer esse apoio filantrópico virar realidade. O que vemos tomando corpo agora tem muito a ver com o coração, as pessoas estão tocadas pela situação. Mas para investir de maneira mais robusta, tem de realmente acreditar que a ciência vale a pena. Ter a convicção nisso é o que vai fazer a diferença”, afirma Aguilaniu.

Mesmo as universidades começaram a se organizar para isso só agora. A USP, por exemplo, criou uma plataforma para receber doações para os projetos científicos dedicados a covid-19. O programa USP Vida, criado há um mês, arrecadou cerca de R$ 500 mil, segundo o pró-reitor de pesquisa, Sylvio Canuto.

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Floricultores de Holambra doaram flores para profissionais de saúde da Unicamp Foto: Unicamp

A Unicamp também se organizou para captar recursos. O reitor Marcelo Knobel procurou tribunais de Justiça para pedir repasses de recursos de processos judiciais, como multas e termos de ajustamento de conduta. Conseguiu com isso mais de R$ 10 milhões.

Ele também criou um mecanismo na universidade para receber doação de pessoas e empresas. Já conseguiu mais cerca de R$ 3 milhões, além de equipamentos, como tablets para que os pacientes de covid-19 do Hospital Universitário possam falar com seus familiares. Para animar os profissionais de saúde, até flores foram doadas, dos produtores da cidade vizinha de Holambra.

Por Giovana Girardi
Fonte O Estado de S.Paulo